
39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campos /SP.
Ópera Febril, da Cia. do Trailler
é obra que propõe um difícil equilíbrio entre razão e sensibilidade.
|




Rodrigo Morais Leite
É jornalista, historiador e crítico teatral. Atua como professor da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (ETUFBA) e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA.

Rodrigo Morais Leite
Ópera Febril, da Cia. do Trailler, é obra que propõe um difícil equilíbrio entre razão e sensibilidade.
Rodrigo Morais Leite 1
O espetáculo Ópera Febril, da Cia. do Trailler – Teatro em Movimento, dá continuidade à pesquisa empreendida pelo grupo desde 2019, ano de estreia do ótimo Experimento: Desterro.Doc, atrelada à linguagem do teatro documentário (ou documental, como preferem alguns). Trata-se de uma linguagem, como a própria expressão revela, na qual a obra se constrói a partir da seleção e exposição em cena de fontes documentais autênticas, expediente que lhe confere um lastro direto e objetivo com uma determinada realidade.
As raízes mais remotas dessa vertente teatral, interessada em pulverizar os limites que separam ficção e realidade, encontram-se no movimento naturalista europeu, que vicejou na segunda metade do século retrasado com repercussão em muitos países não-europeus, incluindo o Brasil. Sua conformação “definitiva”, contudo, é normalmente atribuída ao encenador alemão Erwin Piscator, que na primeira metade do século XX procurou articular em seus espetáculos um amplo aparato documental, quase sempre exposto ao público por meio de projeções cinematográficas.
A estética teatral burilada pela Cia. do Trailler nos últimos anos é herdeira assumida dos procedimentos piscatorianos, embora adaptados ao tempo presente e em conformidade com certos parâmetros do teatro contemporâneo. Para o desenvolvimento dessa pesquisa, foi firmada uma profícua parceria entre o coletivo e o diretor Marcelo Soler, um especialista na seara do teatro documentário tanto do ponto de vista prático, enquanto artista e produtor de obras circunscritas ao gênero, como do ponto de vista teórico, enquanto autor de trabalhos acadêmicos a ele relacionados.
De Piscator, Desterro.Doc e Ópera Febril têm em comum, antes de mais nada, o seu substrato épico, ligado à origem etimológica da palavra, que diz
1 É jornalista, historiador e crítico teatral. Atua como professor da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (ETUFBA) e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA.
respeito àquilo que é exterior ao homem, ou seja, às relações do ser humano em sociedade, segundo aspectos políticos, econômicos e sociais. Se, em Desterro.Doc, o debate abordava a política de separação de corpos – valendo-se, para isso, da história do antigo Sanatório Vicentina Aranha – em Ópera Febril ele se desloca para a precarização das relações de trabalho, a partir da investigação empreendida pelo grupo em torno da Tecelagem Parahyba, antiga fábrica de cobertores existente em São José dos Campos entre as décadas de 1920 e 1990.
Dessa mesma matriz estética o grupo se afasta ao adotar certos princípios de composição radicalmente antidramáticos, responsáveis por levá-lo à fronteira de um teatro performático. Exemplos de tais princípios encontram-se no fato de o elenco surgir em cena despersonificado, eximindo- se de interpretar quaisquer personagens, ou dos espetáculos dispensarem o recurso da fabulação, no sentido de delinearem, mesmo que de modo atípico, uma narrativa a ser acompanha pelo público.
No caso específico de Ópera Febril – o tema, afinal, desta reflexão – tem- se um elenco formado de cinco atuadores/as-musicistas que se esmera, no desenrolar das cenas, na execução de inúmeras funções, que vão do canto à contrarregragem. Com o propósito de lhe conferir um feitio coral, todos/as utilizam o mesmo figurino, que remete ao vestuário utilizado pelos trabalhadores da indústria têxtil.
A roteirização do espetáculo prevê uma trajetória bem demarcada, na qual são apresentadas ao público duas formas cruéis de exploração, sendo uma o desdobramento da outra. A primeira delas, simbolizada pela Tecelagem Parahyba, seria a exploração “tradicional” dentro da ordem do capitalismo industrial, que permitia ao patronato obter um controle extremo sobre os corpos à sua disposição nas manufaturas. Em tal regime prevalecia a expropriação direta e manifesta do trabalho alheio, com a utilização de meios coercitivos igualmente diretos e manifestos.
Para ilustrar essa primeira forma de exploração, a trupe se vale de uma série de documentos encontrados no Arquivo Público do Município de São José dos Campos, projetados no fundo da cena e que revelam os procedimentos aplicados pela extinta tecelagem com vistas a exterminar qualquer tipo de oposição dos trabalhadores àquela estrutura opressora.
Já a segunda forma de exploração, a contemporânea, consequência direta de um tipo de capitalismo pós-industrial, comparece com força na obra quando esta volta sua atenção ao passado mais recente da política brasileira, em especial para o governo de Michel Temer (2016-2018), responsável por implementar uma reforma trabalhista afinada aos interesses burgueses do setor terciário. Seria esse o momento de consolidação da chamada “uberização” das relações de trabalho, em que até mesmo a noção dual embutida no termo “trabalhador” é combatida, em favor de palavras inofensivas mais apropriadas à classe dominante, tais como “colaborador” e, principalmente, “empreendedor”.
A exploração, que antes era explícita, torna-se implícita. O patronato, que antes possuía um rosto, agora deixa de tê-lo. E o trabalhador, isolado, vendendo sua força de trabalho como um prestador de serviços, sem saber direito de onde vêm as forças que o oprimem, resigna-se na crença alienante de que sua autonomia o levará ao sucesso profissional. O triunfo máximo do individualismo sobre o coletivismo.
Nessa trajetória que vai de um a outro regime trabalhista, inúmeros são os recursos cênicos utilizados em Ópera Febril, como projeções pré-gravadas ou gravadas in loco, coros sonantes e dissonantes, testemunhos pessoais dos/as atuadores/as (sempre relacionados aos aspectos profissionais de suas vidas), máscaras, objetos, áudios de whatsapp revelados por meio da técnica do verbatim… enfim, uma gama muito variada de artifícios que, por mais heterotópicos que sejam, perfazem, do início ao fim, uma profunda coerência lógico-discursiva ao serem mobilizados.
E é exatamente aí, nessa coerência, que se revela uma das virtudes do espetáculo, relacionada à sua capacidade de penetrar, com argúcia, em um aspecto fundamental de nossas relações sociais, valendo-se, para isso, de uma cena compósita e de uma estética híbrida, que se poderia designar, pelos motivos expostos mais atrás, de épico-performática. A ordem em que os termos estão colocados não é aleatória.
Mesmo contendo elementos que remetem a um teatro, em tese, mais formalista, o núcleo de Ópera Febril é, sobretudo, épico, por apresentar um conteúdo claro e preciso (ainda que sem fábula) e por seu caráter didático- pedagógico, no melhor sentido da expressão, que se articula ao legado
brechtiano na defesa de uma arte a serviço do esclarecimento. Dentro dessa concepção, a obra da Cia. do Trailler se justifica plenamente.
Contudo, se a exposição de dados estatísticos e informações históricas, desde que utilizados com inteligência e honestidade intelectual, podem servir ao propósito de esclarecer o/a espectador/a, nem sempre é possível, com tais recursos, emocioná-lo/a. Isso se dá por um motivo simples: apesar de fundamentais, eles são, no fundo, meras abstrações, portanto incapazes de gerar algum tipo de identificação emocional. E a emoção, é bom lembrar, não está excluída do teatro épico outrora propugnado por Bertolt Brecht. O problema, conforme o próprio teatrólogo salientava em seus textos teóricos e em sua prática cênica, é que a emoção esteja a serviço da razão, elevada, portanto, a atos de conhecimento.
Em Ópera Febril, como também em Experimento: Desterro.Doc, a estratégia de que se valem os/as roteiristas para atingir esse objetivo é individualizar o assunto sob análise, encarnando-o em figuras reais cujas trajetórias personificariam ou a catástrofe da “uberização”, no primeiro caso, ou a catástrofe da “sanitarização”, no segundo. No tocante à “uberização”, coube a Thiago de Jesus Dias exercer essa função, motoboy massacrado por uma jornada diária de 12 horas de trabalho que o leva a morrer de AVC; no tocante à “sanitarização”, à personagem de Izaura, esposa que acompanha o marido tuberculoso ao Sanatório Vicentina Aranha e é por ele abandonada lá. São nessas oportunidades, em que uma empatia racionalmente conduzida se interpõe no interior das obras, que o público sente “na pele” as dores e tristezas pessoais relacionadas aos problemas escrutinados. E são também nelas que os dois espetáculos arrematam o projeto embutido em seus respectivos escopos, de esclarecer sem jamais perder de vista a noção
segundo a qual teatro é, antes de tudo, divertimento. Razão e sensibilidade.
- All
- Cidades
- Cinema
- Teatro
- Back
- São José dos Campos
- Taubaté
- Jacarei
- Caçapava
- São Luiz do Paraitinga
Crítica – VENENO – Grupo: Teatro Estúdio por Rodrigo Morais Leite no 39º Festivale
VENENO – Grupo: Teatro Estúdio – Produções Artísticas – foto paullo amarall /FCCR 39º FESTIVALE – O Festivale é um…
Crítica – Espetáculo 2 Mundos, por Bob Sousa no 39º Festivale
Cinema, São José dos Campos, Teatro
2 Mundos, da Companhia Lumiato Teatro de Formas Animadas – foto paullo amarall / FCCR 39º FESTIVALE – O Festivale…
Crítica – Ópera Febril por Rodrigo Morais Leite no 39º Festivale
Ópera Febril – Grupo: Cia Do Trailler / Teatro Em Movimento – foto paullo amarall / FCCR 39º FESTIVALE –…
Fim



