
39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campos/SP.
A Força da Água, grupo Pavilhão da Magnólia,
A Indústria da Seca em Forma de Poesia Cênica
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Rodrigo Morais Leite
É jornalista, historiador e crítico teatral. Atua como professor da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (ETUFBA) e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA.

Rodrigo Morais Leite
O espetáculo A Força da Água, produzido pelo grupo cearense Pavilhão da Magnólia, chegou a São José dos Campos credenciado por uma distinção significativa: o Prêmio Shell de Destaque Nacional, categoria criada em 2023 que contempla trabalhos produzidos fora do eixo Rio-São Paulo.
À primeira vista, dir-se-ia que o tema do trabalho diz respeito à seca do sertão nordestino, notadamente do interior do Ceará, que de tempos em tempos promove naquela região enormes deslocamentos demográficos, bem como um número assustador de mortos tragados pela fome e pela sede. Mas essa seria, com certeza, uma impressão superficial de A Força da Água, que de fato aborda não a seca, mas a indústria da seca, ou seja, o entorno político e econômico que gira ao redor das iniciativas de minorar semelhante flagelo.
É por essa camada social poderosa, formada de políticos, coronéis, latifundiários, militares e membros do clero, dentre outras figuras, que o espetáculo se interessa. Perfazendo uma trajetória que vai, grosso modo, da década de 1870 até os dias mais recentes, ele descortina para o/a espectador/a um amplo painel histórico, repleto de horror e iniquidade, no qual o problema da água é motivo até para ações genocidas, como seria o caso do massacre do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, ocorrido em 1937, em que uma comunidade inteira foi atacada e dizimada pelo simples motivo de lá ter criado um sistema de irrigação artesanal que funcionava, motivo de sua invejada (e temida) prosperidade. Uma espécie de Canudos cearense.
Por uma interessante coincidência, todo esse repertório documental surge em cena por meio de uma linguagem híbrida, que interpõe, de maneira bem conjuntada, teatro documentário e performatividade cênica, traço que aproxima A Força da Água do espetáculo Ópera Febril, daqui mesmo de São
José dos Campos, um dos trabalhos que concorreram à supracitada categoria do Prêmio Shell e que também se apresentou neste Festivale.
Em ambos os espetáculos, tem-se em cena atores e atrizes despersonificados, e que portanto falam em seu próprio nome; em ambos não se tem uma fábula a ser contada, mas uma sequência de informações a ser transmitida; em ambos utiliza-se o recurso da projeção em tela, por meio da qual a documentação recolhida durante a pesquisa é exposta ao público. Para além das respectivas temáticas, obviamente diferentes entre si, os recursos mobilizados em A Força da Água divergem em alguns pontos aos encontrados em Ópera Febril. Um deles tem a ver com o engenhoso uso feito pelo grupo cearense de dois rolos de papel kraft que, ao serem manipulados no chão do palco, vão no decorrer da obra se transformando numa linha do tempo.
Dos cinco atuadores/as que compõem o elenco, todos fazem um pouco de tudo: cantar, dançar, tocar um instrumento musical, filmar algum campo da cena para projetá-lo na tela e até operar o som e a luz do espetáculo, num vaivém que se reveza entre, basicamente, dois registros: o de atores-narradores e o de atores-performers. No entorno dos artistas, uma cenografia que, como não poderia deixar de ser, remete à atmosfera do semiárido cearense, como o chão de cor terracota (coberto pelas roupas daqueles que nele tombaram), a palhoça e o encanamento precário encontrado em tais residências, por onde circula uma água muito escassa.
No percurso estipulado pela dramaturgia de A Força da Água, no qual são intercalados, de maneira vertiginosa, toda uma gama de dados históricos, algo abstrato, há espaço para uma abordagem mais individualizada, quando o foco recai sobre a biografia político-literária da escritora Raquel de Queiroz, conterrânea do grupo, que de artista revolucionária, filiada ao partido comunista e ligada ao modernismo engajado da década de 1930, tornou-se uma artista reacionária, apoiadora do regime de exceção perpetrado em 1964. Um exemplo, enfim, de traição às causas populares.
À medida que o espetáculo avança, A Força da Água se abre para abordar questões mais genéricas, ligadas à ordem capitalista, que fazem da água um ativo econômico, a ponto de ainda hoje ela não ser considerada um direito constitucional, apesar de algumas tentativas nesse sentido. A solução proposta pela obra para resolver todos esses problemas, expressa na última parte, teria a ver com uma mudança na noção de tempo em nossa sociedade, que substituísse o tempo burguês, ligado à ideia de produtividade, por um outro tempo, desprovido dessa necessidade.
Pela sua riqueza semântica, e pela “pegada” cenopoética conferida a um tema incômodo, A Força da Água faz jus ao prêmio recebido este ano, que veio abrilhantar a trajetória de um grupo longevo, com vinte anos de história. De todo modo, a título de conclusão, fica a seguinte pergunta: por que, em nenhum momento, é mencionada no espetáculo a criação da Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste), órgão de importância capital dentro da temática propugnada? Trata-se, sem dúvida, de uma ausência sentida.
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