
A Força da Água, grupo Pavilhão da Magnólia – foto paullo amaral / FCCR 39º FESTIVALE – O Festivale é…
39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campos/SP.
Embora o cabaré, enquanto uma linguagem teatral específica, esteja associado ao teatro alemão, em especial ao período de existência da chamada República de Weimar (1918-1933), suas origens são na verdade francesas, e remotam ao século XV. Uma de suas marcas distintivas tem a ver com o espaço onde as apresentações cabaréticas se dão, permissivos ao consumo de bebidas alcoólicas e petiscos, o que lhe confere um ar de gênero boêmio e proscrito, cuja relação com o público difere sobremaneira do teatro tradicional.
Mas não há dúvida de que a forma pela qual o cabaré é hoje conhecido, relacionada a um teatro de quadros, com números específicos e independentes entre si, é uma criação germânica, que influenciaria inclusive a obra de nomes como Frank Wedekind e Bertolt Brecht, figuras proeminentes do teatro alemão.
É dessa tradição que a Pseuda Trupe de Variedades, um coletivo de artistas da região de São José dos Campos, se apropria, com o espetáculo Cabaré dos Mortos, apresentado neste Festivale à meia-noite do último sábado no Centro de Estudos Teatrais (CET), a famosa “sessão maldita”. A informação a respeito do horário não é gratuita, uma vez que ela se liga tanto ao gênero em que a obra se insere, e sua origem marginal, quando à sua “temática” específica, relacionada à morte, como o título revela.
O uso das aspas se explica porque não se trata de um espetáculo interessado em abordar a morte do ponto de vista filosófico. Longe disso. Ela comparece como uma sugestão formal: conforme proclama o mestre de cerimônias da noite, que no cabaré recebe o nome de conferencista, ao adentrar no espaço cênico o público estaria sendo levado para o hades, o inferno na mitologia grega, que pouco ou nada se assemelha, vale ressalvar, ao inferno judaico-cristão. Nesse sentido, o conferencista encarnaria a figura
de Caronte, o condutor da barca responsável por transportar a alma dos mortos, através dos rios Estige e Aqueronte, para os submundos.
Essa sugestão se reflete em três aspectos de Cabaré dos Mortos: o figurino, a cenografia e a maquiagem utilizada pelo elenco. Em relação ao primeiro, pelo uso de adereços majoritariamente pretos, cor relacionada à morte; ao segundo, pelas reproduções de caveiras e ossos humanos posicionados na parte frontal do espaço cênico; ao terceiro, pelos rostos cobertos de pintura branca, com variações características, que conferem aos atuadores traços fantasmagóricos.
A inspiração para a composição de Cabaré dos Mortos, como informa um dos diretores do trabalho (Carlos Rosa), vem do cabaré berlinense As Catacumbas, em atividade entre o final da República de Weimar e o começo do Terceiro Reich (1929-1935), que se notabilizou por abrigar, em plena era de ascensão nazista, artistas perseguidos pela extrema-direita alemã. Também serviu de modelo o Cabaré da Morte, de Paris, existente no período da Belle Époque, de onde vêm os motivos fúnebres presentes no espetáculo. Com efeito, se poderia afirmar, a partir desses dados, que o primeiro contribui com a obra em debate pela sua faceta política, ao passo que o segundo pela sua compleição estética de cunho macabro. Do ponto de vista político, o alvo da sátira desenvolvida em Cabaré dos Mortos, como outrora acontecera na Alemanha, é a extrema-direita, ainda que em outro contexto histórico e geográfico (mas nem tanto assim guardadas as devidas proporções). Lá como cá, o mesmo ódio à diferença, a mesma repulsa aos que se desviam de uma determinada sexualidade normativa, aos que não comungam, enfim, do lema “Deus, Pátria, Família”, cuja origem no Brasil remonta à pregação ultraconservadora encampada pela Ação Integralista
Brasileira (AIB) na década de 1930, a versão nativa do fascismo italiano.
Com esse propósito em mente, os quadros que compõem o espetáculo, bastante diferentes entre si, são interligados não pela unidade linguística, e muito menos por conta de uma história a ser contada, mas pelo fato de todas, ou quase todas, buscarem provocar o/a espectador pelo aspecto comportamental, ironizando e criticando tudo aquilo que caracteriza a moral fundamentalista cristã, hoje em dia encampada principalmente pelas igrejas neopentecostais, como a heteronormatividade, a homofobia, a transfobia, o
machismo, ou seja: tudo o que não se enquadre dentro do fanatismo ascético trombeteado por essas igrejas.
Exemplos mais ostensivos dessa postura, que se pretende um tiro na hipocrisia reinante, seria a cena de sadomasoquismo (simulado, claro), apresentada com requintes hierofílicos, e a cena em que a atriz Sílvia King canta uma espécie de “canção da frigidez”, pungente e engraçada, sobre a castração sexual feminina no contexto de uma sociedade patriarcal.
Por se tratar de um trabalho composto de quadros, é natural que haja uma certa irregularidade entre eles, alguns “funcionando” melhor do que outros, embora isso também dependa muito do gosto do freguês, palavra aqui perfeitamente cabível pelas razões expostas no início desta reflexão. Palhaçaria, bufonaria, lira acrobática, canto coral uníssono são algumas das manifestações cênicas e musicais que comparecem em Cabaré dos Mortos. E outras ainda poderiam comparecer, pois a versão apresentada pelo coletivo no Festivale, devido ao horário da sessão, foi reduzida consideravelmente, com a retirada de alguns quadros.
Contando com um elenco bastante heterogêneo, formado de atores, cantores, músicos e dançarinos, em Cabaré dos Mortos cada integrante contribui com aquilo que sabe fazer de melhor (no âmbito da linguagem com a qual possui maior intimidade), o que garante ao espetáculo um nível técnico muito bom. Ressalte-se também a alegria de assistir a uma obra que congrega um total de quatorze talentosos artistas em cena, algo raríssimo no teatro produzido hoje em dia, cada vez mais depauperado economicamente. De resto, fica aqui registrada a esperança, talvez vã, de que a Pseuda Trupe, de um coletivo esporádico, torne-se um grupo estável, o caminho mais adequado para que a pesquisa desenvolvida em Cabaré dos Mortos não se interrompa, o que seria uma pena.

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