
39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campo/SP.
2 Mundos, da Companhia Lumiato Teatro de Formas Animadas
Iluminando o pensamento crítico pela força da visualidade
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Bob Sousa
É fotógrafo, pesquisador e doutorando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp (com orientação da Profª Drª Simone Carleto Fontes), onde também obteve o título de mestre em Artes. É jurado de Teatro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes – e de Artes Visuais do Prêmio Arcanjo de Cultura. Autor do livro Retratos do teatro (Editora Unesp).

Bob Sousa
O espetáculo 2 Mundos, da Companhia Lumiato Teatro de Formas Animadas, apresentado no Cine Santana durante a 39ª Edição do FestiVale, reafirma a potência do teatro de sombras como linguagem contemporânea capaz de discutir temas complexos e universais. A montagem transforma o espaço cênico em um território simbólico, onde o confronto entre culturas ganha corpo por meio da luz, da forma e da ausência de palavras.
Inspirado em processos históricos de colonização, o espetáculo ultrapassa a dimensão factual para tocar o plano sensível e humano do encontro entre civilizações. A visualidade construída pela Cia. Lumiato é rigorosa e ao mesmo tempo poética, composta por figuras geométricas que remetem à estética cubista. Essa escolha estética fragmenta o olhar do espectador, permitindo que a multiplicidade de perspectivas revele a impossibilidade de uma narrativa única sobre o passado e o presente.
A experiência sensorial proposta pelo grupo rompe a barreira tradicional entre público e cena. Ao convidar o espectador a adentrar o espaço performativo, 2 Mundos o coloca dentro de uma atmosfera em que o som, as sombras e a luz constroem camadas de significação. O corpo dos atuadores se dilui entre figuras projetadas e volumes translúcidos, criando uma dramaturgia visual que se sustenta no ritmo e na composição imagética.
O público é convidado a ocupar o palco, tornando-se parte da cena e da atmosfera criada pelas sombras. Duas grandes telas delimitam o espaço e representam os dois mundos em questão: de um lado, a Europa; de outro, as Américas. Entre elas, uma terceira tela funciona como passagem, metáfora visual do mar que conecta e separa ao mesmo tempo, lembrando que o oceano foi tanto rota de descobertas quanto de violências e deslocamentos. Essa disposição espacial cria uma imersão sensorial que amplia o sentido de travessia e pertencimento.
A tridimensionalidade da estética cubista, incorporada à encenação de 2 Mundos, dialoga com a bidimensionalidade das imagens projetadas e produz um jogo visual que desafia a percepção do espectador. As figuras geométricas, fragmentadas e sobrepostas, criam uma ilusão de profundidade que tensiona o plano das telas, fazendo com que as sombras pareçam emergir e se dissolver no espaço. Essa fricção entre o volume sugerido e a superfície projetada amplia a experiência sensorial do teatro de sombras, deslocando-o do mero plano bidimensional para um campo expandido de visualidade. O resultado é uma composição que transforma luz e forma em matéria viva, instaurando uma poética do movimento entre o real e o imaginado.
As influências de Pablo Picasso e Tarsila do Amaral atravessam a visualidade de 2 Mundos e dialogam diretamente com a proposta estética da Cia. Lumiato. De Picasso, o espetáculo herda a fragmentação cubista, que rompe com a perspectiva linear e permite observar simultaneamente múltiplos ângulos de uma mesma realidade. Essa multiplicidade visual reflete o confronto entre culturas e o entrelaçamento de tempos históricos, transformando a cena em um espaço de tensão e reconstrução simbólica. De Tarsila, emerge o olhar latino-americano que ressignifica o modernismo europeu, inserindo cores, formas e imaginários que traduzem a experiência colonial e suas heranças. Essa combinação entre o cubismo europeu e a brasilidade de Tarsila cria uma poética híbrida, em que as sombras projetadas assumem o papel de telas vivas, misturando ancestralidade e modernidade, denúncia e encantamento.
A ausência de fala não representa um vazio, mas sim um gesto de escuta. As sombras tornam-se vozes, e as formas em movimento evocam a memória coletiva de um mundo marcado por conquistas e violências. Nesse silêncio, a narrativa se faz universal, permitindo que o público reconheça em si mesmo os dilemas éticos e emocionais que atravessam a humanidade em tempos de conflito.
A técnica e a sincronicidade de Soledad Garcia e Thiago Bresani são elementos fundamentais na construção da linguagem visual de 2 Mundos. O domínio da manipulação das sombras revela um rigor coreográfico que transcende a simples execução técnica, convertendo o gesto em expressão dramática. Cada movimento é milimetricamente calculado, mas ainda assim carrega uma organicidade que faz das figuras projetadas presenças pulsantes. A harmonia entre os dois intérpretes cria uma coreografia silenciosa em que corpo, luz e objeto se fundem, sustentando a fluidez narrativa do espetáculo. Essa precisão compartilhada transforma a manipulação em poesia visual, consolidando o trabalho da dupla como uma verdadeira dança de sombras que respira e se move em uníssono.
A linguagem cinematográfica permeia a encenação de 2 Mundos, ampliando o alcance da narrativa visual e criando uma temporalidade própria dentro do espaço teatral. Os enquadramentos precisos, as transições entre planos e o uso do foco e do desfoque remetem à gramática do cinema, transformando o olhar do espectador em uma lente que se desloca entre o macro e o micro. A alternância entre cenas de grande escala e composições mais íntimas confere ritmo e tensão à dramaturgia das sombras, como se cada imagem fosse um fotograma em movimento. Essa aproximação entre o cinema e o teatro de sombras produz uma experiência híbrida, em que o tempo é editado pela luz e o espaço se torna tela, fundindo o sensorial e o imagético em uma mesma respiração poética.
Na obra, a relação entre luz e sombra assume um papel de descolonização do pensamento, rompendo com as hierarquias tradicionais do olhar ocidental que opõem clareza e obscuridade. A Cia. Lumiato transforma a sombra, muitas vezes
associada à ausência, em potência criadora e espaço de revelação. A luz deixa de ser instrumento de dominação visual e passa a coexistir com a escuridão, instaurando um campo de ambiguidade onde múltiplas narrativas podem emergir. Nesse jogo, o espetáculo propõe uma revisão sensorial da história, convidando o público a enxergar não apenas o que é iluminado, mas também o que foi silenciado. A estética das sombras torna-se, assim, uma prática simbólica de resistência, capaz de iluminar as zonas esquecidas da memória coletiva e questionar os modos coloniais de ver e representar o mundo.
Em 2 Mundos, o teatro de sombras não é apenas técnica, mas linguagem poética e política. O espetáculo convida à reflexão sobre a alteridade e o poder, sobre os limites do olhar e sobre a necessidade de reconhecer o outro como espelho. Assim, a Cia. Lumiato constrói uma obra que une rigor estético e profundidade simbólica, reafirmando a força da visualidade como forma de pensar o mundo e suas contradições.
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Fim



