
39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campo/SP.
Estou Bem Aqui e Lembrei de Você – Grupo em Bando Coletivo
Um breve pouso dentro de si
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Bob Sousa
É fotógrafo, pesquisador e doutorando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp (com orientação da Profª Drª Simone Carleto Fontes), onde também obteve o título de mestre em Artes. É jurado de Teatro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes – e de Artes Visuais do Prêmio Arcanjo de Cultura. Autor do livro Retratos do teatro (Editora Unesp).

Bob Sousa
O espetáculo Estou Bem Aqui e Lembrei de Você, apresentado na 39ª edição do FestiVale, propõe uma experiência singular ao transformar a cidade em matéria poética. Criado pelo Em Bando Coletivo, o trabalho se inscreve na linguagem do áudio tour ficcional, onde o público percorre as ruas com fones de ouvido, guiado por uma narrativa que se mistura às sonoridades e paisagens urbanas. A Praça da Matriz se converte em ponto de partida e em palco vivo. O espectador, ao caminhar, atravessa camadas de tempo e memória, entrelaçando ficção e realidade em uma dramaturgia sensorial, guiados pela voz de Luma Eckert.
A construção da visualidade do espetáculo se dá justamente na ausência de imagens concretas. A narrativa visual emerge da escuta. O som convoca o olhar. Cada esquina, fachada ou sombra se torna parte da encenação, revelando uma estética da presença e da imaginação. O percurso pela cidade transforma o espaço cotidiano em cenário simbólico, e a palavra em lente que reposiciona o olhar sobre o urbano. Assim, a visualidade não está em um cenário montado, mas naquilo que o público vê ao ser guiado pela voz. A cidade se torna um grande dispositivo visual, onde cada elemento arquitetônico é reinterpretado pela potência do som.
O enredo, centrado na neta que refaz os passos da avó, é também uma travessia afetiva entre gerações. A dramaturgia original de João Lirio e Marcus Di Bello adquire um sentido de continuidade e homenagem, revelando uma delicada articulação entre lembrança e presença. O corpo ausente da avó se refaz na paisagem, nas vozes que ecoam, nas respirações que o público acompanha. A performance convida a um gesto de escuta atenta, em que a cidade sussurra suas próprias histórias e o passado se refaz na caminhada. A produção é de Jamili Limma, com assistência de Felippe Salve.
A cartografia em movimento proposta ultrapassa a ideia de mapa fixo e geografia estável. O percurso traçado pela dramaturgia sonora se transforma a cada passo do público, que redesenha o território com o corpo e com a escuta. Essa cartografia sensível não busca orientar, mas desorientar, abrindo brechas para que o espaço urbano seja percebido como um organismo vivo e mutável. A caminhada se torna um gesto de escrita efêmera sobre o chão da cidade, uma forma de reinscrever memórias
e afetos no espaço coletivo. Cada trajeto é único, pois depende do ritmo, do olhar e da imaginação de quem o percorre, convertendo a experiência em uma geografia poética que se desenha no tempo do presente.
A construção poética se ancora na delicada percepção de que as pessoas vão, mas as memórias ficam. O espetáculo transforma essa ideia em experiência sensorial, fazendo da ausência uma forma de presença. As vozes que ecoam nos fones de ouvido reconstituem rastros de vidas que atravessaram as mesmas ruas, como se a cidade guardasse em suas paredes e calçadas as lembranças daqueles que partiram. A poética do trabalho reside nesse entrelaçamento entre o efêmero e o permanente, em que a passagem do tempo é percebida não como perda, mas como continuidade. A memória, nesse contexto, não é estática, mas viva, capaz de se reatualizar a cada escuta, a cada passo, a cada olhar que reconhece no espaço urbano a persistência de quem já não está.
Estou Bem Aqui e Lembrei de Você dialoga profundamente com as reflexões de Michel de Certeau em A Invenção do Cotidiano, especialmente na ideia de que caminhar é um ato poético e político de reescrita do espaço. Assim como Certeau vê o pedestre como um narrador que inscreve histórias na cidade com seus passos, o espetáculo propõe uma dramaturgia que se constrói na relação entre o corpo e o território. O público, ao percorrer as ruas guiado pela escuta, reinventa a paisagem urbana e transforma trajetos comuns em percursos de imaginação e memória. Essa aproximação revela que o cotidiano, muitas vezes invisível, é também campo de criação e resistência. A performance evidencia que habitar a cidade é uma forma de narrá-la, e que cada passo pode ser um gesto de invenção, capaz de transformar o espaço vivido em experiência estética e afetiva.
A obra se constrói dentro de cada pessoa que a vivencia. O espetáculo não oferece uma narrativa fechada, mas um campo aberto de sensações, lembranças e imagens que se formam na interioridade do ouvinte. À medida que o público caminha, o som desperta memórias pessoais que se misturam à ficção, criando uma dramaturgia íntima e invisível. A cidade deixa de ser apenas cenário e se torna extensão do corpo e da escuta, enquanto a voz narradora atua como um fio que costura o dentro e o fora, o vivido e o imaginado. Cada espectador compõe sua própria versão do espetáculo, fazendo da experiência uma criação compartilhada e, ao mesmo tempo, profundamente individual. Parte dessas experiências foram articuladas pelos participantes ao final da caminhada.
A experiência ganha uma dimensão ainda mais íntima quando coincide com o dia do meu aniversário, como um gesto de pouso em mim mesmo. Caminhar pela cidade nesse dia, guiado por vozes que falam de memória, tempo e ausência, é como revisitar minha própria trajetória em silêncio. O espetáculo se torna espelho e rito, um convite a celebrar não o que passa, mas o que permanece. A cada esquina, a escuta revela fragmentos de vida que se entrelaçam às lembranças pessoais, e o percurso transforma-se em uma travessia interior. Há algo de rito de passagem nessa experiência, como se o ato de caminhar e ouvir fosse também o de renascer em meio à cidade que acolhe, guarda e devolve ecos da própria existência.
Estou Bem Aqui e Lembrei de Você é uma experiência sobre o tempo, o espaço e a memória. Um convite a caminhar com os ouvidos e ver com a lembrança. A cidade, nesse percurso, deixa de ser cenário para se tornar personagem, presença viva que acolhe a ficção e devolve ao público um espelho de si mesmo.
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Crítica – Estou Bem Aqui e Lembrei De Você – Grupo Bando Coletivo, por Bob Sousa no 39º Festivale
Cinema, São José dos Campos, Teatro
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Fim


