
39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campo/SP.
Foi enquanto eu esperava a encomenda de um livro de Maiakóvski que tive uma epifania sobre a revolução”, da Grupo Pano
Não se faz revolução sem poesia




Bob Sousa
É fotógrafo, pesquisador e doutorando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp (com orientação da Profª Drª Simone Carleto Fontes), onde também obteve o título de mestre em Artes. É jurado de Teatro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes – e de Artes Visuais do Prêmio Arcanjo de Cultura. Autor do livro Retratos do teatro (Editora Unesp).

Bob Sousa
O espetáculo “Foi enquanto eu esperava a encomenda de um livro de Maiakóvski que tive uma epifania sobre a revolução”, da Grupo Pano, com texto e direção de Caio Silviano, apresentado na 39ª Edição do FestiVale, constrói uma potente narrativa visual sobre o impasse entre o desejo de transformação e a inércia cotidiana. Em cena, quatro camaradas se reúnem em uma célula revolucionária para planejar o grande ato que, em tese, promoveria a revolução efetiva no Brasil. O espaço cênico, delimitado por elementos simples e simbólicos, traduz visualmente o confinamento das ideias, a clausura do pensamento e a espera como condição política e existencial. No elenco, estão: Amanda Quintero, Barroso, Caio Silviano, Ciça Barros, Henrique Reis, Juliano Veríssimo e Rafael Érnica.
A visualidade da obra se ancora na precariedade como escolha estética e discurso. O cenário parece montado com restos e improvisos, sugerindo uma revolução que já nasce desfeita. As cores terrosas, os objetos desajustados e o figurino com uma estética clownesca, de Cecília Barros, constroem uma atmosfera de ironia e desilusão. Cada elemento visual revela a tentativa frustrada de manter viva uma chama revolucionária que se apaga na repetição dos gestos e das falas.
O uso do clown emerge como estratégia de esgarçamento do drama e de desmascaramento dos próprios intérpretes. Ao revelar as falhas, tropeços e dúvidas, o espetáculo rompe a ilusão teatral e escancara a fragilidade dos corpos e das ideias. Essa escolha visual e performativa desloca o olhar do público para o limite entre o ridículo e o trágico. O riso, nesse contexto, não surge como alívio, mas como denúncia do absurdo que sustenta nossa passividade diante do mundo.
A encenação parte da convicção de que não se faz revolução sem poesia, pois é na dimensão poética que o pensamento se desarma e se refaz. A poesia, nesse contexto, não é ornamento nem fuga, mas o próprio motor sensível da ação política. É ela que permite aos personagens reimaginar o mundo, reconfigurar o cotidiano e romper o discurso automatizado das ideologias. A espera pelo livro de Maiakóvski simboliza essa busca por uma palavra que reacenda o fogo da transformação, ainda que o gesto poético se revele mais potente que o conteúdo do livro em si. Assim, a
obra afirma que toda revolução verdadeira precisa nascer do encontro entre a lucidez crítica e a delicadeza da imaginação.
A iluminação, de Luis Seixas, acompanha o tempo suspenso dessa espera, oscilando entre a penumbra e a luz dura, como se o palco respirasse a ansiedade do não acontecimento. Quando o livro finalmente chega, a cena já revelou o essencial: o impulso revolucionário não virá de fora, não será inspirado por um poeta distante, mas precisa ser gestado na própria ação, no agora.
A música, no espetáculo, não surge como mera ambientação, mas como elemento narrativo que costura as ações e amplia os sentidos da cena. Os intérpretes-músicos incorporam o som como extensão de seus próprios corpos, criando uma dramaturgia sonora que dialoga com o ritmo da espera e com o pulso revolucionário que nunca se concretiza. Cada canção, cada batida ou ruído participa ativamente da construção do enredo, funcionando como comentário crítico, ironia ou impulso poético. O ato de tocar e cantar em cena reforça a noção de coletividade, tornando o palco um espaço de comunhão e resistência. A música, portanto, não apenas acompanha o discurso, mas o produz, tornando-se a voz daquilo que as palavras já não alcançam dizer.
A presença da comédia dell’arte e das máscaras neutras funcionam como eixo de atuação e fundamento da multiplicidade de personagens no espetáculo. Essa escolha revela uma inteligência cênica que transforma o corpo do ator em território de invenção, permitindo o trânsito entre diferentes tipos e arquétipos sociais. As máscaras, mais do que disfarces, tornam-se dispositivos de ampliação expressiva, desvelando a contradição entre o indivíduo e o coletivo. Cada gesto e cada voz carregam ecos de séculos de teatro popular e político, reafirmando o riso como forma de crítica e sobrevivência. A teatralidade exacerbada da comédia dell’arte dialoga com a própria proposta da obra, que tensiona o ideal revolucionário e o transforma em jogo, mostrando que a revolução também pode nascer da irreverência, da paródia e do exagero.
O espetáculo estabelece um diálogo direto com a noção de heterotopia proposta por Michel Foucault, ao construir em cena um espaço outro, simultaneamente real e simbólico, onde se refletem as contradições do mundo exterior. A célula revolucionária, com seus objetos precários e seus corpos em suspenso, funciona como uma espécie de espelho distorcido da sociedade, um lugar em que o possível e o impossível convivem. Essa heterotopia teatral abriga tanto a utopia da mudança quanto o fracasso do agir, revelando o teatro como território de resistência e imaginação. Ao transformar o palco em um espaço de espera e de sonho, a Grupo
Pano cria uma geografia da dúvida, na qual os limites entre revolução e estagnação, entre ficção e realidade, se embaralham. O espetáculo, assim, torna-se ele próprio uma heterotopia viva, onde o espectador é convidado a habitar o intervalo entre o desejo de transformação e a consciência de que essa transformação precisa começar dentro de cada um.
A citação ao cachimbo, referência à célebre análise de Michel Foucault sobre a pintura “A traição das imagens” de René Magritte, introduz no espetáculo uma reflexão metalinguística sobre o signo e a representação. Assim como o quadro que afirma “Isto não é um cachimbo” desmonta a ilusão entre o objeto e sua imagem, o espetáculo da Grupo Pano provoca o espectador a questionar a distância entre a ideia de revolução e sua efetiva realização. Ao trazer essa referência, a encenação ironiza a própria condição do teatro como espaço de enunciação e simulacro, lembrando que dizer “revolução” não é o mesmo que fazê-la. O cachimbo, nesse contexto, torna-se metáfora da palavra que se esvazia quando não encontra corpo e ação. Dessa forma, a obra se inscreve no pensamento foucaultiano, revelando o abismo entre discurso e realidade, e transformando esse abismo em matéria poética e crítica.
A relação com o tempo no espetáculo é marcada por uma tensão entre o movimento e a estagnação, entre o desejo de agir e a permanência na espera. A ideia de quebrar os relógios surge como gesto simbólico de insubordinação frente à lógica produtivista e linear que governa a vida cotidiana. Ao suspender o tempo, os personagens criam um espaço de imaginação e resistência, um intervalo onde a revolução pode ser pensada não como evento futuro, mas como experiência presente. O ato de quebrar o relógio, portanto, não representa o fim do tempo, mas a recusa em viver sob o tempo imposto. É uma tentativa de libertar o corpo e o pensamento da contagem cronológica, instaurando um tempo poético, circular e humano, em que a ação e a espera se confundem. Nesse gesto, o espetáculo propõe uma revolução do próprio ritmo da existência.
A expressão “Esse mundo ainda é nosso” ergue-se como estandarte da revolução proposta pelo espetáculo, condensando em uma única frase o grito de resistência e pertencimento que atravessa a cena. Mais do que um slogan, essa afirmação funciona como gesto poético e político, lembrando que a transformação não é herança de um passado heroico nem promessa de um futuro distante, mas um ato possível no presente. O espetáculo faz dessa frase um ponto de convergência entre o desencanto e a esperança, entre o riso e a urgência. Quando os personagens a proclamam, mesmo diante do fracasso e da espera, o público é convocado a partilhar a crença de que a revolução, ainda que esgarçada e adiada, continua latente em cada corpo disposto a sonhar e agir.
A citação, no bate-papo final, dita por Silviano, à militância do Grupo TUOV, especialmente na figura de Graciela Rodriguez, amplia o campo de leitura do espetáculo e o inscreve em uma tradição de teatro engajado e de resistência cultural no Brasil. Ao evocar o trabalho do TUOV, a Grupo Pano reconhece a força de uma prática artística comprometida com o corpo como lugar de memória e de transformação social. Essa referência não é mero tributo, mas um gesto de continuidade, uma reafirmação de que a arte ainda pode ser um instrumento de consciência e ação política. O diálogo com a trajetória do TUOV ressoa como um lembrete de que a revolução também se faz pela persistência da cena, pela coletividade e pela presença ativa do artista em seu tempo. Nesse encontro entre gerações, o espetáculo se reconhece herdeiro de uma militância estética que transforma o palco em território de luta e de esperança.
A Grupo Pano, com essa obra, constrói uma visualidade que pensa o teatro como campo de resistência e autocrítica. O espetáculo transforma a inércia em linguagem, o fracasso em poesia e o riso em gesto político. Em um tempo em que a espera parece substituir o agir, “Foi enquanto eu esperava…” devolve ao público a urgência do movimento, mostrando que toda revolução começa quando o palco deixa de ser apenas metáfora e se torna espaço de enfrentamento.
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