
39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campo/SP.
Isto não é uma mesa, do grupo El Cuerpo que Crea, de São Francisco Xavier
Isto não é uma crítica




Bob Sousa
É fotógrafo, pesquisador e doutorando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp (com orientação da Profª Drª Simone Carleto Fontes), onde também obteve o título de mestre em Artes. É jurado de Teatro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes – e de Artes Visuais do Prêmio Arcanjo de Cultura. Autor do livro Retratos do teatro (Editora Unesp).

Bob Sousa
O espetáculo Isto não é uma mesa, do grupo El Cuerpo que Crea, de São Francisco Xavier, apresentado na 39ª edição do FestiVale, propõe uma experiência sensorial que ultrapassa a forma teatral tradicional. A cena se constrói em torno de um único objeto cotidiano, uma mesa comum, que se converte em metáfora da própria condição humana. A simplicidade da estrutura cênica revela a potência do teatro físico, onde o corpo é o principal mediador entre o visível e o invisível, entre o gesto e o pensamento.
A mesa, que a princípio parece apenas um suporte funcional, ganha novos sentidos à medida que o espetáculo avança. Em suas superfícies e silêncios se inscrevem encontros, ausências e memórias. O objeto cotidiano se torna espaço de revelação e de estranhamento, lugar onde o real se desdobra em sonho e onde o banal é elevado à categoria do poético. Nesse jogo entre o concreto e o simbólico, os intérpretes Ana Clara Bomio e Carlos Ramirez instauram uma dramaturgia do corpo em constante mutação, que faz da fisicalidade um canal de pensamento.
A visualidade do espetáculo é construída na delicadeza das transições e na economia de recursos. A iluminação e o som, conduzidos por María Gavaldón e Edwin Ospina, criam atmosferas que oscilam entre a introspecção e o delírio. Cada variação de luz parece conduzir o olhar para dentro da matéria da cena, transformando a mesa em espaço de passagem entre estados de consciência. A sonoplastia atua como força invisível que atravessa o corpo e as emoções. Sons sutis, respirações, ruídos e fragmentos melódicos instauram atmosferas que espelham os estados anímicos dos intérpretes. Em alguns momentos, o som emerge como pulsação interna; em outros, como brisa ou ruído distante que evoca memórias e sonhos. Essa composição sonora não ilustra a cena, mas a prolonga em outra dimensão, sugerindo um diálogo entre o que é ouvido e o que é sentido. A sonoridade age sobre o espectador como uma vibração emocional, conduzindo-o por um percurso entre o racional e o intuitivo, o consciente e o onírico.
A sensação de percepção nasce do convite ao olhar contemplativo. À medida que o espectador desacelera, o objeto cotidiano se revela em novas camadas de significado. A mesa deixa de ser apenas um suporte funcional para se tornar um território de descobertas sensoriais. O olhar, antes acostumado à pressa e à utilidade, passa a perceber o silêncio, o peso, as texturas e a energia contida no espaço. Esse deslocamento perceptivo cria uma experiência de presença, onde cada gesto e cada pausa adquirem densidade poética. O espectador é levado a experimentar a cena como um estado de atenção expandida, capaz de transformar o comum em extraordinário.
A narrativa visual se estrutura como uma pintura em movimento, onde a imagem é menos representação e mais presença. O grupo investiga o que se oculta sob a superfície das coisas, aquilo que o olhar acelerado do cotidiano não percebe. O gesto lento, o toque, o desequilíbrio e a pausa instauram um tempo outro, um tempo que convida à escuta e à contemplação. É nesse sentido que a obra adquire uma dimensão política: a desaceleração torna-se ato de resistência diante da urgência contemporânea.
A xícara, único objeto em cena, surge como foco de atenção e mistério. De sua borda, uma leve fumaça se eleva e corta a escuridão, instaurando uma imagem de silêncio e suspensão. Esse gesto mínimo, quase imperceptível, condensa a força poética do espetáculo. A fumaça que escapa do recipiente parece materializar o pensamento, o respiro, o instante em que o invisível ganha forma. A luz, ao tocar o vapor, revela um tempo dilatado, em que o olhar do espectador é convidado a repousar e a decifrar o indizível. A xícara deixa de ser utensílio cotidiano e se torna metáfora do efêmero, do que existe apenas por um instante e logo se dissipa, como o próprio ato teatral.
A dualidade entre o feminino e o masculino não é tratada como oposição, mas como complementaridade. Os corpos em cena, de Ana Clara Bomio e Carlos Ramirez, se encontram e se afastam em movimentos que alternam força e delicadeza, entrega e resistência. O feminino surge como energia de acolhimento e sensibilidade, enquanto o masculino aparece como impulso e estrutura. No entanto, ambos se misturam e se transformam mutuamente, revelando que as fronteiras entre esses polos são porosas e móveis. A encenação propõe, assim, uma reflexão sobre o equilíbrio entre essas forças, sugerindo que o verdadeiro sentido da criação está no diálogo entre elas.
A peça também atravessa os limiares entre vida e morte, entre o onírico e o racional. O corpo em cena parece oscilar entre estados de presença e ausência, entre o gesto consciente e o impulso instintivo. Há momentos em que a mesa se transforma em altar, túmulo ou berço, condensando os ciclos de nascimento e fim que marcam a experiência humana. A dimensão onírica se manifesta como expansão do real, enquanto a razão busca compreender o indizível. Essa tensão entre sonho e pensamento cria uma poética de contrastes, em que a morte não é encerramento, mas passagem, e o sonho não é fuga, mas forma de ver o invisível.
Na obra, habitar o corpo é compreender o corpo como território de escuta e de experiência. O gesto deixa de ser representação para tornar-se presença viva, permeada por memórias, tensões e afetos. Habitar o corpo significa reconhecer sua complexidade, suas fragilidades e potências, permitindo que ele fale antes da palavra. Na fisicalidade dos intérpretes, o corpo é espaço de encontro entre o consciente e o instintivo, entre o impulso e a contenção. Cada movimento é um ato de autoconhecimento e, ao mesmo tempo, uma forma de comunicação com o outro, como se o corpo se tornasse o próprio palco da percepção e da transformação.
Desenvolver a psique, outra proposta da encenação, é o gesto de romper com os automatismos do pensamento. O espetáculo propõe uma espécie de reprogramação sensorial, na qual o público é convidado a desmontar as certezas e a reconstruir o olhar. Ao deslocar o objeto comum — a mesa — de seu lugar funcional, a obra provoca uma fissura no sistema racional que organiza o mundo. Essa ruptura abre espaço para o imaginário, para o inconsciente e para o sonho. Hackear a psique, nesse contexto, é subverter as narrativas impostas, descolonizar o olhar e permitir que o sensível retome o comando da percepção. O teatro se torna, assim, um exercício de liberdade interior, uma travessia que desafia o espectador a pensar com o corpo e a sentir com a mente.
Isto não é uma mesa faz lembrar a provocação surrealista de René Magritte, deslocando o signo do seu significado, questionando o que vemos e o que acreditamos ver. A peça convida o público a reeducar o olhar, a perceber a poesia contida nos objetos simples e a reconhecer no corpo o território do sensível e do imaginário. A mesa é, ao mesmo tempo, chão e portal, estrutura e abismo, espelho e labirinto.
Assim como a encenação propõe ver o invisível no cotidiano, esta reflexão busca habitar o espaço entre o ver e o compreender, entre o sentir e o analisar. A crítica aqui não se estrutura como veredito, mas como presença contemplativa diante da experiência. É um modo de pensar com o corpo e de escrever com o olhar, permitindo que a palavra se torne extensão da cena. Em vez de classificar, a escrita se deixa afetar, transformando o ato crítico em criação compartilhada.
Ao final, o espetáculo se revela como um exercício de reaprendizagem da percepção. Através da força expressiva dos corpos e da sutileza dos elementos visuais, o grupo cria uma experiência que une filosofia e poesia, material e imaterial, razão e sonho.
O que parecia uma simples mesa se transforma em mundo, e o que parecia conhecido se torna mistério outra vez.
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Crítica – Isto não é uma mesa, do grupo El Cuerpo que Crea, por Bob Sousa no 39º Festivale
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Fim


