Crítica – Solteira Sim, Sozinha Nunca,Teatro do Imprevisto por Bob Sousa no 39º Festivale

Solteira SIm, Sozinha Nunca – Grupo Teatro do Imprevisto – foto paullo amarall / FCCR

39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campo/SP.

Solteira Sim, Sozinha Nunca – Grupo Teatro do Imprevisto
Quando a cena respira o que a vida inventa
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Bob Sousa

É fotógrafo, pesquisador e doutorando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp (com orientação da Profª Drª Simone Carleto Fontes), onde também obteve o título de mestre em Artes. É jurado de Teatro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes – e de Artes Visuais do Prêmio Arcanjo de Cultura. Autor do livro Retratos do teatro (Editora Unesp).
Bob Sousa

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A encenação de Solteira Sim, Sozinha Nunca propõe uma experiência visual que combina tradição e contemporaneidade. Partindo da linguagem do teatro de mamulengos, a montagem conduz o espectador a um universo em que o popular se torna crítica social e o lúdico se converte em ferramenta política. A história da boneca Maricota, que foge de um casamento arranjado e retorna para reivindicar sua herança, é o ponto de partida para uma reflexão sobre a condição feminina, a autonomia das mulheres e a persistência do machismo em espaços culturais e simbólicos ainda marcados por estruturas patriarcais.

 

 

A visualidade do espetáculo emerge da justaposição entre o humano e o boneco. Cibele Tomaz, Jorge Peronelli, Ricardo Salem e Vivian Rau movimentam seus corpos e manipulam as figuras de madeira com destreza e afeto, fazendo da fronteira entre corpo e objeto um campo de invenção. Essa transição contínua entre o real e o imaginário cria uma cena pulsante, em que a manipulação é também gesto cênico e expressão dramatúrgica. O figurino colorido e as formas caricatas dos bonecos dialogam com o imaginário do mamulengo, mas rompem com a tradição quando colocam a mulher no centro da narrativa e subvertem o papel feminino que outrora era motivo de riso ou submissão.

 

 

A cenografia, concebida por Ricardo Salem, remete a uma feira ou festa popular, criando um espaço que convida à celebração e à crítica. O uso de elementos artesanais, tecidos estampados e pequenas estruturas móveis reforça o caráter itinerante e coletivo da linguagem do mamulengo. A música ao vivo, dirigida por Vivian Rau, atravessa a encenação como fio condutor e sustenta o ritmo das ações. O som dos tambores e do triângulo costura as cenas, transformando o palco em um terreiro de encontro e resistência.

 

 

Há, na narrativa visual do espetáculo, uma dimensão ritual. O humor, a música e o improviso criam momentos de comunhão entre artistas e plateia. Os bonecos dialogam com o público, rompendo a ilusão teatral e aproximando a cena da rua, da feira, do espaço popular. Essa interação direta reativa o caráter democrático do mamulengo, ao mesmo tempo em que reconfigura seu discurso. O riso não é apenas

um efeito de comicidade, mas um modo de desarmar preconceitos e abrir espaço para o questionamento.

 

 

A direção de Ricardo Salem, com orientação da Mestra Titinha, assume o desafio de atualizar uma linguagem tradicional sem esvaziar seu sentido comunitário. A visualidade nasce do entrelaçamento de memórias: a do mamulengo como herança popular e a das mulheres que, como Maricota, ainda lutam para ter voz e poder de decisão sobre suas próprias vidas. A dramaturgia revisitada em 2025 transforma o palco em espelho das transformações sociais e culturais que atravessam o Brasil contemporâneo.

 

 

Na apresentação realizada na Praça do Sapo, na 39ª Edição do FestiVale, a harmonia do improviso revelou-se como extensão natural do cotidiano urbano. O espetáculo dialogou com o ambiente vivo da praça, incorporando sons, vozes e movimentos do entorno à sua tessitura cênica. Crianças que corriam, a fila para alimentação popular, pessoas que cruzavam o espaço e o burburinho das conversas formaram uma trilha sonora espontânea que se misturou à música e às falas dos bonecos. Essa fusão entre arte e vida conferiu à encenação um caráter orgânico e coletivo, em que o improviso não era falha, mas potência. A cena se adaptava aos imprevistos e os transformava em matéria poética, reafirmando o mamulengo como teatro do povo e da rua, capaz de acolher o real e devolvê-lo em forma de celebração e reflexão.

 

 

Durante a apresentação, um participante inusitado surgiu e, sem saber, deu nova dramaturgia à cena. Um morador de rua que observava à distância aproximou-se lentamente e começou a interagir com os bonecos, respondendo às falas e improvisando gestos que despertaram risos e apreensão no público. Em vez de interromper o fluxo do espetáculo, o elenco acolheu sua presença com leveza, incorporando-o à narrativa como se fosse um personagem que sempre tivesse estado ali. Esse momento de espontaneidade reafirmou a força do teatro popular, em que a fronteira entre palco e plateia se dissolve, e o acontecimento real se transforma em criação compartilhada. O inesperado tornou-se símbolo da vitalidade do mamulengo, capaz de se reinventar a cada encontro com o público e com a vida que pulsa ao redor.

 

 

A questão do poder feminino atravessa toda a dramaturgia e se afirma também como função social do espetáculo. A trajetória de Maricota, que recusa um casamento imposto e reivindica o direito à própria história, transforma-se em metáfora para a autonomia das mulheres e para a desconstrução de papéis cristalizados pela tradição.

 

A cena não apenas representa o feminino, mas o faz agir, falar e decidir, subvertendo séculos de silenciamento. O poder feminino aqui é construído pela voz, pela presença e pela escolha, tornando-se eixo dramatúrgico e político. Ao propor uma mulher que se emancipa sem perder o humor e a alegria, o espetáculo inscreve-se como ato de resistência, reafirmando o teatro popular como espaço de transformação social. A estética do mamulengo, antes dominada por figuras masculinas, é ressignificada como território de expressão das mulheres e de crítica às estruturas patriarcais ainda persistentes no cotidiano brasileiro.

 

 

Solteira Sim, Sozinha Nunca reinventa a estética do teatro de bonecos e reafirma a potência do olhar popular quando se abre à crítica e à diversidade. O espetáculo constrói uma visualidade que é, ao mesmo tempo, festa e denúncia. Entre a madeira esculpida e o corpo vivo, entre a cantoria e a ironia, emerge uma cena que celebra o feminino e inscreve novas histórias no território do teatro popular brasileiro.


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