Crítica – Tudo a Fazer – Grupo Cia Azul Celeste por Bob Sousa no 39º Festivale

Tudo A Fazer – Grupo Cia Azul Celeste – foto paullo amarall / FCCR

39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campo/SP.

Tudo A Fazer – Grupo Cia Azul Celeste
Qual é a saída?
|

Bob Sousa

É fotógrafo, pesquisador e doutorando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp (com orientação da Profª Drª Simone Carleto Fontes), onde também obteve o título de mestre em Artes. É jurado de Teatro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes – e de Artes Visuais do Prêmio Arcanjo de Cultura. Autor do livro Retratos do teatro (Editora Unesp).
Bob Sousa

Bob Sousa






Em “Tudo a fazer”, apresentado no Teatro Municipal de São Jose dos Campos na 39ª Edição do FestiVale, a visualidade se constrói como campo filosófico e como experiência sensorial de suspensão. O beco, escolhido como espaço de encenação, torna-se extensão simbólica da existência humana. É o não-lugar por excelência, entre a saída de serviço do teatro e a rua, entre a arte e a vida, entre o sentido e o absurdo. A cenografia concebida por Jorge Vermelho opera nesse limiar, instaurando uma paisagem de transição onde o espectador é convocado a refletir sobre o próprio ato de esperar, observar e existir.

 

 

A narrativa visual emerge do encontro improvável entre Godot e Samuel Beckett. Essa bricolagem dramatúrgica, guiada por Alexandre Manchini Jr. e Jorge Vermelho, compõe uma tessitura intertextual que reverbera ecos de Dante, Camus, Kafka e Arendt. Cada citação se inscreve não apenas na palavra, mas na matéria visível da cena. Em dado momento, as projeções de Vinícius Dal’Acqua incorporam fragmentos de pensamento que se tornam imagem em movimento. O vídeo deixa de ilustrar para instaurar outro plano de presença, dialogando com corpos e sombras, com a concretude do espaço urbano.

 

 

A direção de Georgette Fadel e Jorge Vermelho trabalha a visualidade como provocação. O uso da luz, desenhada por Luis Fernando Lopes, não apenas ilumina, mas rasga o espaço, revelando o invisível. Há algo de metafísico na forma como a iluminação alterna claridade e penumbra, expondo os personagens à dúvida, à vertigem e à solidão.

 

 

A iluminação assume papel decisivo como elemento dramatúrgico, articulando sentidos que ultrapassam a simples visibilidade da cena. A concepção luminotécnica cria um embate visual entre sombra e claridade, materializando o confronto filosófico entre Godot e Beckett. Enquanto Beckett permanece sob a luz, revelado e exposto, Godot habita a penumbra, como se fosse uma presença espectral, uma ideia em busca de corpo. Essa escolha visual estabelece uma hierarquia simbólica que inverte a lógica original do texto beckettiano, em que Godot é o ausente. Aqui, ele está presente, mas velado.

O contraste entre o iluminado e o oculto transforma a luz em linguagem. Beckett, visível, torna-se a consciência, o autor que interroga o próprio sentido da criação. Godot, encoberto, representa o mistério, a espera, aquilo que nunca se revela completamente. A luz, portanto, não apenas mostra, mas narra. Ela desenha o pensamento em cena, conduzindo o olhar do espectador entre o real e o imaginário.

 

 

Há momentos em que a penumbra de Godot parece pulsar, sugerindo que o invisível também tem presença. A sombra torna-se personagem, densidade e silêncio. A luz sobre Beckett, em contrapartida, cria uma exposição quase cruel, como se o criador estivesse condenado à lucidez. Essa construção visual reforça o eixo temático da obra: a tensão entre o ser e o não-ser, entre a palavra e o vazio, entre o que se ilumina e o que insiste em permanecer oculto.

 

 

O grande luminoso com a palavra “Saída”, suspenso sobre a encenação, atua como signo visual de potente ambiguidade. Em sua aparente simplicidade, o letreiro adquire força simbólica e filosófica. É um convite e uma ironia. Indica uma direção possível, mas num contexto onde a própria ideia de saída se dissolve. A palavra brilha sobre os corpos como promessa e impossibilidade, como se a iluminação artificial substituísse a luz do entendimento.

 

 

Na dramaturgia visual, esse elemento funciona como eixo de leitura do espaço. Ele tensiona o sentido de limiar presente na encenação, pois o espetáculo se dá justamente na fronteira entre o dentro e o fora, entre o teatro e a rua, entre a ficção e o real. O letreiro “Saída” não indica apenas um caminho físico, mas também um desejo metafísico de transcendência, de ruptura com o absurdo beckettiano.

 

 

Ao iluminar o beco, o luminoso instaura um paradoxo. A saída está ali, evidente, mas ninguém parece capaz de alcançá-la. É nesse intervalo que a visualidade encontra sua potência poética. A palavra flutua sobre os atores como uma epifania suspensa, reafirmando a condição humana de estar sempre a caminho, sempre à beira de partir e nunca de fato sair.

 

 

O figurino de Godot, também de Vermelho, tensiona o espectro do real, expondo o excesso e afirmando o corpo como signo. Cada peça parece conter a poeira do caminho, o desgaste do tempo, o peso da espera. O visagismo de Gaia do Brasil completa essa construção poética, ampliando o gesto, o olhar e a expressão como matéria plástica. A sonoplastia, criada por Vermelho em parceria com Murilo Gussi e André Clínio, reforça a sensação de eco interior, como se o som fosse pensamento.

 

A relação com a obra “O último Godot”, de Matéi Visniec, é o eixo conceitual e poético que sustenta a dramaturgia de “Tudo a fazer”. No texto de Visniec, o autor propõe um reencontro entre Beckett e seu próprio personagem, numa espécie de acerto de contas entre criador e criatura. O espetáculo de Alexandre Manchini Jr. e Jorge Vermelho amplia esse gesto metateatral, deslocando o debate para o campo da visualidade e da experiência cênica brasileira. Assim, o diálogo entre Godot e Beckett passa a existir no corpo, na luz e no espaço de um Brasil em conflito com a arte e seus artistas.

 

 

Em “O último Godot”, Visniec questiona o sentido da espera e a própria condição do teatro contemporâneo. Em “Tudo a fazer”, essas questões se corporificam no beco que serve de palco. A escolha desse espaço urbano é uma tradução visual da incompletude presente na escrita de Visniec. O beco é o lugar do impasse, daquilo que não chega a se resolver. A encenação reinscreve essa lógica do inacabado, transformando a cena em metáfora da própria busca de sentido.

 

 

A obra de Visniec é também uma reflexão sobre o papel do artista diante do tempo e da história. Na encenação, esse pensamento encontra corpo no gesto dos atores e no olhar do coro/transeuntes. A fronteira entre ficção e realidade, essencial em “O último Godot”, se atualiza na cena viva, onde a espera já não é mais apenas de personagens, mas também de um público que partilha do mesmo impasse.

 

 

A presença do coro, formado por participantes locais, cria uma camada comunitária de sentido. Esses corpos inscrevem no espetáculo uma textura de realidade. O olhar deles, que é também o olhar do público, tensiona a fronteira entre representação e acontecimento.

 

 

A ideia de um Godot que rompe a coxia para debater o “lixo do teatro”, da cultura e do pensamento crítico é um dos gestos mais contundentes da obra. Essa ruptura simboliza a saída da personagem do espaço da ficção para o território do real. Godot deixa de ser o ser esperado para tornar-se aquele que volta, aquele que cobra, aquele que pensa. Ao atravessar a coxia, ele rasga a membrana que separa o palco da vida e denuncia o esvaziamento simbólico que atravessa o fazer artístico contemporâneo.

 

 

O discurso sobre o “lixo do teatro” não é apenas provocação, mas uma autocrítica

que devolve ao público a responsabilidade pelo estado da arte e da cultura. Godot,

 

ao falar desse lixo, não se refere apenas aos restos materiais, mas aos resíduos de pensamento, às repetições estéticas, à falta de risco e de inquietação. Sua fala é a tentativa de recolher o que foi descartado: a potência do pensamento crítico, a coragem da invenção, o sentido de comunidade que o teatro historicamente abrigou.

 

 

Essa ação cênica transforma o personagem em porta-voz do desencanto, mas também em arauto da possibilidade de renascimento. O beco onde a cena se passa amplia essa metáfora, tornando-se espaço de resíduos e recomeços. Ao emergir dali, Godot surge como corpo que atravessa os limites, misto de profeta e catador, que revisita os escombros da cultura em busca de sentido.

 

 

A visualidade desse momento reforça o impacto simbólico do gesto. As luzes frias e o ambiente árido acentuam a sensação de desolação, enquanto a presença do público, em proximidade física, cria um campo de tensão e cumplicidade. Assim, “Tudo a fazer” não apenas revisita Beckett e Visniec, mas faz do próprio teatro uma questão urgente. O Godot que retorna da coxia é também o espectador, o artista e o cidadão que precisam, mais uma vez, decidir o que ainda vale ser dito, visto e pensado.

 

 

A falha nos microfones, durante a apresentação, interferiu de modo perceptível na tessitura sonora da obra. Em um espetáculo que faz do som um elemento dramatúrgico e filosófico, cada ruído e cada silêncio têm função estruturante. A sonoridade não atua como mero suporte técnico, mas como camada de pensamento. Por isso, as falhas de captação e amplificação acabaram por quebrar a continuidade sensorial da experiência.

 

 

A ausência intermitente das vozes produziu momentos de dispersão e descompasso entre a palavra e a imagem. O texto, denso e reflexivo, exige escuta atenta, e o ruído técnico impôs uma espécie de ruído conceitual involuntário. Paradoxalmente, essa imperfeição acabou por revelar a fragilidade do próprio ato teatral. Assim como em Beckett e Visniec, o erro se torna parte da cena, denunciando o absurdo de tentar comunicar o incomunicável.

 

 

Ainda que a falha técnica tenha comprometido a clareza da tessitura sonora, o conjunto da encenação manteve sua força poética. O público, atento, acabou por preencher as lacunas do som com o próprio olhar, transformando o silêncio em matéria de reflexão. Nesse sentido, a falha não apenas prejudicou, mas também

 

ressignificou o acontecimento, reafirmando a condição precária e efêmera que é própria do teatro.

 

 

“Tudo a fazer” é um espetáculo que propõe a cena como pensamento visual. O encontro entre Godot e Beckett, antes impossível, ganha forma na tensão entre a palavra e a imagem. A visualidade não serve ao texto, mas o atravessa, revelando que toda filosofia é também uma experiência sensível. No beco iluminado, a espera se converte em arte e o absurdo, em beleza. A busca para achar uma saída. Nada a fazer?


Facebook


Instagram


Youtube

  • All
  • Cidades
  • Cinema
  • Teatro
    •   Back
    • São José dos Campos
    • Taubaté
    • Jacarei
    • Caçapava
    • São Luiz do Paraitinga

Leia Mais

Fim