Crítica – VENENO – Grupo: Teatro Estúdio por Rodrigo Morais Leite no 39º Festivale

VENENO – Grupo: Teatro Estúdio – Produções Artísticas – foto paullo amarall /FCCR

39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campos/SP.

VENENO – Grupo: Teatro Estúdio:
Dentro da linguagem dramática, Veneno é um depurado espetáculo acerca do luto
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Rodrigo Morais Leite

É jornalista, historiador e crítico teatral. Atua como professor da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (ETUFBA) e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA.
Rodrigo Morais Leite

Rodrigo Morais Leite






O luto é um assunto recorrente em diversas manifestações artísticas, dentre as quais se incluiriam o cinema, a literatura e o teatro. Embora existam inúmeras formas de luto, relacionadas ao tipo de perda que a ele associa (um primo, um amigo ou uma tia, por exemplo), muito provavelmente a mais tematizada, por ser a mais dolorosa, é a perda de um/a filho/a. O motivo é simples: ao contrário da morte de um pai ou de uma mãe, algo que, bem ou mal, faz parte do ciclo da vida, a morte de um/a filho/a é antinatural, por romper esse ciclo.

Com efeito, superar a partida de alguém tão próximo, e que ainda por cima estaria destinado a enterrar seus progenitores quando a velhice deles chegasse, é quase impossível, senão impossível. É disso de que se trata o espetáculo Veneno, produção do Teatro Estúdio de São Paulo dirigida por Eric Lenate e protagonizada por Cléo de Páris e Alexandre Galindo. O texto encenado, um drama em quatro atos produzido pela dramaturga holandesa Lot Vekemans, jamais havia sido montado no Brasil, e vem revelar, para nós, uma escritora de talento, cujo conhecimento esbarra no fato de escrever em uma língua pouco divulgada fora das fronteiras de sua terra natal.

O enredo não é difícil de resumir: dez anos após a morte do filho, atropelado por um motorista imprudente, os pais se encontram novamente, numa sala contígua a um cemitério, com a missão de remover de lá os restos mortais do menino, devido à contaminação do solo onde está seu jazigo. A separação do casal foi uma iniciativa do marido, que, abalado pelo acontecimento, abandonou a esposa para iniciar uma nova vida na França, onde passou a residir e onde está em vias de formar uma nova família (a segunda esposa está grávida).

Uma vez confinados no local, pois ninguém aparece para lhes dar satisfação, o casal inicia uma densa (e dura) conversa, na qual uma série de mágoas de parte a parte são reveladas, relacionadas, principalmente, ao modo como cada um procurou superar seu próprio luto. Aos poucos, começa a aparecer, por intermédio dos diálogos, uma discreta mas perceptível oposição: enquanto ele, de algum modo, conseguiu dar continuidade à sua vida, ao se estabelecer em outro país e se dispor a um novo matrimônio, ela, por seu turno, estagnou, incapaz de se livrar do estupor advindo do trauma.

Assim resumida, pode parecer, à primeira vista, que se está diante de um drama com influências do dramaturgo sueco August Strindberg (1849- 1912), em que as personagens se digladiariam até que uma delas, quase sempre o homem, destruísse psicologicamente a outra, impondo sua força diante da fragilidade da oponente. Mas Lot Vekemans, ainda bem, não é Strindberg, e não é nada disso que acontece, pelo contrário: à medida que o diálogo avança, o atrito inicial vai dando lugar, aos poucos, a uma convergência de sentimentos, a ponto de no final, irmanados pela dor comum, os dois de certo modo se reconciliarem.

Valendo-se ainda de uma outra comparação, agora em relação ao cinema, se pode afirmar que Veneno seria o negativo do filme Anticristo, do cineasta dinamarquês Lars Von Trier. Tanto em uma como eu outra obra têm-se um casal afetado pelo falecimento do filho. A diferença é que, no filme, ao invés de se separarem, os consortes se isolam do mundo, para a partir daí iniciarem uma sádica jornada expiatória. Curiosamente, as duas obras são de 2009.

Em Veneno, não há expiação, pois se sabe de antemão que ela não é alcançável. A dor pela morte do menino, bem como o aborto causado por ela à relação do casal, são irreparáveis. Mas há companheirismo, solidariedade, expresso na noção de que o padecimento, se não pode ser eliminado, pode ao menos ser aplacado pela reciprocidade afetiva.

Do ponto de vista cênico, Veneno é uma obra que assume uma proposta minimalista: a cenografia é composta, basicamente, de uma mesa posicionada no centro do palco, algumas cadeiras em volta e um bebedouro no canto. Nada além disso. O espetáculo também abdica de utilizar luz teatral,

 

pois a iluminação é feita com lâmpadas tubulares comuns, instaladas acima da mesa.

Abdicando de qualquer aparato cênico, Veneno só poderia mesmo se sustentar no trabalho dos atores que interpretam o malfadado casal. Verdadeiro bálsamo para os olhos e ouvidos do público, nele reside a beleza da obra, fascinante pela precisão e pelo requinte das atuações. Dentro de uma atmosfera que costuma menosprezar o teatro dramático, pejorativamente apontado como “teatrão”, impressiona o preparo do elenco ao lidar com essa forma de expressão teatral calcada na força da palavra, nas pausas, nos ditos e subentendidos previstos no texto. Pelo seu aspecto dramático, e por reduzir os meios expressivos ao mínimo, Veneno poderia ser classificado como um ótimo exemplar daquilo que se costuma chamar “teatro de câmara”.

Por todos esses motivos, não surpreende que o público presente no Centro de Estudos Teatrais (CET), onde ocorreu a apresentação, se emocionasse tanto com a obra. Embora o assunto, por si só, tenha potencial para comover o mais insensível dos seres humanos, é o seu tratamento, a forma como ele é desenvolvido dramatúrgica e cenicamente, o verdadeiro responsável pelo seu impacto, que fazem de Veneno um trabalho de excelência.


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