Crítica – A Força da Água, grupo Pavilhão da Magnólia por Rodrigo Morais Leite no 39º Festivale

A Força da Água, grupo Pavilhão da Magnólia – foto paullo amaral / FCCR

39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campos/SP.

A Força da Água, grupo Pavilhão da Magnólia,
A Indústria da Seca em Forma de Poesia Cênica
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Rodrigo Morais Leite

É jornalista, historiador e crítico teatral. Atua como professor da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (ETUFBA) e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA.
Rodrigo Morais Leite

Rodrigo Morais Leite






O espetáculo A Força da Água, produzido pelo grupo cearense Pavilhão da Magnólia, chegou a São José dos Campos credenciado por uma distinção significativa: o Prêmio Shell de Destaque Nacional, categoria criada em 2023 que contempla trabalhos produzidos fora do eixo Rio-São Paulo.

À primeira vista, dir-se-ia que o tema do trabalho diz respeito à seca do sertão nordestino, notadamente do interior do Ceará, que de tempos em tempos promove naquela região enormes deslocamentos demográficos, bem como um número assustador de mortos tragados pela fome e pela sede. Mas essa seria, com certeza, uma impressão superficial de A Força da Água, que de fato aborda não a seca, mas a indústria da seca, ou seja, o entorno político e econômico que gira ao redor das iniciativas de minorar semelhante flagelo.

É por essa camada social poderosa, formada de políticos, coronéis, latifundiários, militares e membros do clero, dentre outras figuras, que o espetáculo se interessa. Perfazendo uma trajetória que vai, grosso modo, da década de 1870 até os dias mais recentes, ele descortina para o/a espectador/a um amplo painel histórico, repleto de horror e iniquidade, no qual o problema da água é motivo até para ações genocidas, como seria o caso do massacre do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, ocorrido em 1937, em que uma comunidade inteira foi atacada e dizimada pelo simples motivo de lá ter criado um sistema de irrigação artesanal que funcionava, motivo de sua invejada (e temida) prosperidade. Uma espécie de Canudos cearense.

Por uma interessante coincidência, todo esse repertório documental surge em cena por meio de uma linguagem híbrida, que interpõe, de maneira bem conjuntada, teatro documentário e performatividade cênica, traço que aproxima A Força da Água do espetáculo Ópera Febril, daqui mesmo de São

José dos Campos, um dos trabalhos que concorreram à supracitada categoria do Prêmio Shell e que também se apresentou neste Festivale.

Em ambos os espetáculos, tem-se em cena atores e atrizes despersonificados, e que portanto falam em seu próprio nome; em ambos não se tem uma fábula a ser contada, mas uma sequência de informações a ser transmitida; em ambos utiliza-se o recurso da projeção em tela, por meio da qual a documentação recolhida durante a pesquisa é exposta ao público. Para além das respectivas temáticas, obviamente diferentes entre si, os recursos mobilizados em A Força da Água divergem em alguns pontos aos encontrados em Ópera Febril. Um deles tem a ver com o engenhoso uso feito pelo grupo cearense de dois rolos de papel kraft que, ao serem manipulados no chão do palco, vão no decorrer da obra se transformando numa linha do tempo.

Dos cinco atuadores/as que compõem o elenco, todos fazem um pouco de tudo: cantar, dançar, tocar um instrumento musical, filmar algum campo da cena para projetá-lo na tela e até operar o som e a luz do espetáculo, num vaivém que se reveza entre, basicamente, dois registros: o de atores-narradores e o de atores-performers. No entorno dos artistas, uma cenografia que, como não poderia deixar de ser, remete à atmosfera do semiárido cearense, como o chão de cor terracota (coberto pelas roupas daqueles que nele tombaram), a palhoça e o encanamento precário encontrado em tais residências, por onde circula uma água muito escassa.

 No percurso estipulado pela dramaturgia de A Força da Água, no qual são intercalados, de maneira vertiginosa, toda uma gama de dados históricos, algo abstrato, há espaço para uma abordagem mais individualizada, quando o foco recai sobre a biografia político-literária da escritora Raquel de Queiroz, conterrânea do grupo, que de artista revolucionária, filiada ao partido comunista e ligada ao modernismo engajado da década de 1930, tornou-se uma artista reacionária, apoiadora do regime de exceção perpetrado em 1964. Um exemplo, enfim, de traição às causas populares.

À medida que o espetáculo avança, A Força da Água se abre para abordar questões mais genéricas, ligadas à ordem capitalista, que fazem da água um ativo econômico, a ponto de ainda hoje ela não ser considerada um direito constitucional, apesar de algumas tentativas nesse sentido. A solução proposta pela obra para resolver todos esses problemas, expressa na última parte, teria a ver com uma mudança na noção de tempo em nossa sociedade, que substituísse o tempo burguês, ligado à ideia de produtividade, por um outro tempo, desprovido dessa necessidade.

Pela sua riqueza semântica, e pela “pegada” cenopoética conferida a um tema incômodo, A Força da Água faz jus ao prêmio recebido este ano, que veio abrilhantar a trajetória de um grupo longevo, com vinte anos de história. De todo modo, a título de conclusão, fica a seguinte pergunta: por que, em nenhum momento, é mencionada no espetáculo a criação da Sudene (Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste), órgão de importância capital dentro da temática propugnada? Trata-se, sem dúvida, de uma ausência sentida.


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Crítica – Isto não é uma mesa, do grupo El Cuerpo que Crea, por Bob Sousa no 39º Festivale

Isto não é uma mesa, do grupo El Cuerpo que Crea – foto paullo amaral / FCCR

39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campo/SP.

Isto não é uma mesa, do grupo El Cuerpo que Crea, de São Francisco Xavier
Isto não é uma crítica

Bob Sousa

É fotógrafo, pesquisador e doutorando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp (com orientação da Profª Drª Simone Carleto Fontes), onde também obteve o título de mestre em Artes. É jurado de Teatro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes – e de Artes Visuais do Prêmio Arcanjo de Cultura. Autor do livro Retratos do teatro (Editora Unesp).
Bob Sousa

Bob Sousa






O espetáculo Isto não é uma mesa, do grupo El Cuerpo que Crea, de São Francisco Xavier, apresentado na 39ª edição do FestiVale, propõe uma experiência sensorial que ultrapassa a forma teatral tradicional. A cena se constrói em torno de um único objeto cotidiano, uma mesa comum, que se converte em metáfora da própria condição humana. A simplicidade da estrutura cênica revela a potência do teatro físico, onde o corpo é o principal mediador entre o visível e o invisível, entre o gesto e o pensamento.

 

 

A mesa, que a princípio parece apenas um suporte funcional, ganha novos sentidos à medida que o espetáculo avança. Em suas superfícies e silêncios se inscrevem encontros, ausências e memórias. O objeto cotidiano se torna espaço de revelação e de estranhamento, lugar onde o real se desdobra em sonho e onde o banal é elevado à categoria do poético. Nesse jogo entre o concreto e o simbólico, os intérpretes Ana Clara Bomio e Carlos Ramirez instauram uma dramaturgia do corpo em constante mutação, que faz da fisicalidade um canal de pensamento.

A visualidade do espetáculo é construída na delicadeza das transições e na economia de recursos. A iluminação e o som, conduzidos por María Gavaldón e Edwin Ospina, criam atmosferas que oscilam entre a introspecção e o delírio. Cada variação de luz parece conduzir o olhar para dentro da matéria da cena, transformando a mesa em espaço de passagem entre estados de consciência. A sonoplastia atua como força invisível que atravessa o corpo e as emoções. Sons sutis, respirações, ruídos e fragmentos melódicos instauram atmosferas que espelham os estados anímicos dos intérpretes. Em alguns momentos, o som emerge como pulsação interna; em outros, como brisa ou ruído distante que evoca memórias e sonhos. Essa composição sonora não ilustra a cena, mas a prolonga em outra dimensão, sugerindo um diálogo entre o que é ouvido e o que é sentido. A sonoridade age sobre o espectador como uma vibração emocional, conduzindo-o por um percurso entre o racional e o intuitivo, o consciente e o onírico.

A sensação de percepção nasce do convite ao olhar contemplativo. À medida que o espectador desacelera, o objeto cotidiano se revela em novas camadas de significado. A mesa deixa de ser apenas um suporte funcional para se tornar um território de descobertas sensoriais. O olhar, antes acostumado à pressa e à utilidade, passa a perceber o silêncio, o peso, as texturas e a energia contida no espaço. Esse deslocamento perceptivo cria uma experiência de presença, onde cada gesto e cada pausa adquirem densidade poética. O espectador é levado a experimentar a cena como um estado de atenção expandida, capaz de transformar o comum em extraordinário.

A narrativa visual se estrutura como uma pintura em movimento, onde a imagem é menos representação e mais presença. O grupo investiga o que se oculta sob a superfície das coisas, aquilo que o olhar acelerado do cotidiano não percebe. O gesto lento, o toque, o desequilíbrio e a pausa instauram um tempo outro, um tempo que convida à escuta e à contemplação. É nesse sentido que a obra adquire uma dimensão política: a desaceleração torna-se ato de resistência diante da urgência contemporânea.

A xícara, único objeto em cena, surge como foco de atenção e mistério. De sua borda, uma leve fumaça se eleva e corta a escuridão, instaurando uma imagem de silêncio e suspensão. Esse gesto mínimo, quase imperceptível, condensa a força poética do espetáculo. A fumaça que escapa do recipiente parece materializar o pensamento, o respiro, o instante em que o invisível ganha forma. A luz, ao tocar o vapor, revela um tempo dilatado, em que o olhar do espectador é convidado a repousar e a decifrar o indizível. A xícara deixa de ser utensílio cotidiano e se torna metáfora do efêmero, do que existe apenas por um instante e logo se dissipa, como o próprio ato teatral.

A dualidade entre o feminino e o masculino não é tratada como oposição, mas como complementaridade. Os corpos em cena, de Ana Clara Bomio e Carlos Ramirez, se encontram e se afastam em movimentos que alternam força e delicadeza, entrega e resistência. O feminino surge como energia de acolhimento e sensibilidade, enquanto o masculino aparece como impulso e estrutura. No entanto, ambos se misturam e se transformam mutuamente, revelando que as fronteiras entre esses polos são porosas e móveis. A encenação propõe, assim, uma reflexão sobre o equilíbrio entre essas forças, sugerindo que o verdadeiro sentido da criação está no diálogo entre elas.

A peça também atravessa os limiares entre vida e morte, entre o onírico e o racional. O corpo em cena parece oscilar entre estados de presença e ausência, entre o gesto consciente e o impulso instintivo. Há momentos em que a mesa se transforma em altar, túmulo ou berço, condensando os ciclos de nascimento e fim que marcam a experiência humana. A dimensão onírica se manifesta como expansão do real, enquanto a razão busca compreender o indizível. Essa tensão entre sonho e pensamento cria uma poética de contrastes, em que a morte não é encerramento, mas passagem, e o sonho não é fuga, mas forma de ver o invisível.

 

Na obra, habitar o corpo é compreender o corpo como território de escuta e de experiência. O gesto deixa de ser representação para tornar-se presença viva, permeada por memórias, tensões e afetos. Habitar o corpo significa reconhecer sua complexidade, suas fragilidades e potências, permitindo que ele fale antes da palavra. Na fisicalidade dos intérpretes, o corpo é espaço de encontro entre o consciente e o instintivo, entre o impulso e a contenção. Cada movimento é um ato de autoconhecimento e, ao mesmo tempo, uma forma de comunicação com o outro, como se o corpo se tornasse o próprio palco da percepção e da transformação.

Desenvolver a psique, outra proposta da encenação, é o gesto de romper com os automatismos do pensamento. O espetáculo propõe uma espécie de reprogramação sensorial, na qual o público é convidado a desmontar as certezas e a reconstruir o olhar. Ao deslocar o objeto comum — a mesa — de seu lugar funcional, a obra provoca uma fissura no sistema racional que organiza o mundo. Essa ruptura abre espaço para o imaginário, para o inconsciente e para o sonho. Hackear a psique, nesse contexto, é subverter as narrativas impostas, descolonizar o olhar e permitir que o sensível retome o comando da percepção. O teatro se torna, assim, um exercício de liberdade interior, uma travessia que desafia o espectador a pensar com o corpo e a sentir com a mente.

 

 

Isto não é uma mesa faz lembrar a provocação surrealista de René Magritte, deslocando o signo do seu significado, questionando o que vemos e o que acreditamos ver. A peça convida o público a reeducar o olhar, a perceber a poesia contida nos objetos simples e a reconhecer no corpo o território do sensível e do imaginário. A mesa é, ao mesmo tempo, chão e portal, estrutura e abismo, espelho e labirinto.

Assim como a encenação propõe ver o invisível no cotidiano, esta reflexão busca habitar o espaço entre o ver e o compreender, entre o sentir e o analisar. A crítica aqui não se estrutura como veredito, mas como presença contemplativa diante da experiência. É um modo de pensar com o corpo e de escrever com o olhar, permitindo que a palavra se torne extensão da cena. Em vez de classificar, a escrita se deixa afetar, transformando o ato crítico em criação compartilhada.

Ao final, o espetáculo se revela como um exercício de reaprendizagem da percepção. Através da força expressiva dos corpos e da sutileza dos elementos visuais, o grupo cria uma experiência que une filosofia e poesia, material e imaterial, razão e sonho.

O que parecia uma simples mesa se transforma em mundo, e o que parecia conhecido se torna mistério outra vez.


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Crítica – Foi enquanto eu esperava a encomenda de um livro de Maiakóvski que tive uma epifania sobre a revolução”, da Grupo Pano por Bob Sousa no 39º Festivale

Foi enquanto eu esperava a encomenda de um livro de Maiakóvski que tive uma epifania sobre a revolução – foto paullo amarall / FCCR

39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campo/SP.

Foi enquanto eu esperava a encomenda de um livro de Maiakóvski que tive uma epifania sobre a revolução”, da Grupo Pano
Não se faz revolução sem poesia

Bob Sousa

É fotógrafo, pesquisador e doutorando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp (com orientação da Profª Drª Simone Carleto Fontes), onde também obteve o título de mestre em Artes. É jurado de Teatro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes – e de Artes Visuais do Prêmio Arcanjo de Cultura. Autor do livro Retratos do teatro (Editora Unesp).
Bob Sousa

Bob Sousa






O espetáculo “Foi enquanto eu esperava a encomenda de um livro de Maiakóvski que tive uma epifania sobre a revolução”, da Grupo Pano, com texto e direção de Caio Silviano, apresentado na 39ª Edição do FestiVale, constrói uma potente narrativa visual sobre o impasse entre o desejo de transformação e a inércia cotidiana. Em cena, quatro camaradas se reúnem em uma célula revolucionária para planejar o grande ato que, em tese, promoveria a revolução efetiva no Brasil. O espaço cênico, delimitado por elementos simples e simbólicos, traduz visualmente o confinamento das ideias, a clausura do pensamento e a espera como condição política e existencial. No elenco, estão: Amanda Quintero, Barroso, Caio Silviano, Ciça Barros, Henrique Reis, Juliano Veríssimo e Rafael Érnica.

 

 

A visualidade da obra se ancora na precariedade como escolha estética e discurso. O cenário parece montado com restos e improvisos, sugerindo uma revolução que já nasce desfeita. As cores terrosas, os objetos desajustados e o figurino com uma estética clownesca, de Cecília Barros, constroem uma atmosfera de ironia e desilusão. Cada elemento visual revela a tentativa frustrada de manter viva uma chama revolucionária que se apaga na repetição dos gestos e das falas.

 

 

O uso do clown emerge como estratégia de esgarçamento do drama e de desmascaramento dos próprios intérpretes. Ao revelar as falhas, tropeços e dúvidas, o espetáculo rompe a ilusão teatral e escancara a fragilidade dos corpos e das ideias. Essa escolha visual e performativa desloca o olhar do público para o limite entre o ridículo e o trágico. O riso, nesse contexto, não surge como alívio, mas como denúncia do absurdo que sustenta nossa passividade diante do mundo.

 

 

A encenação parte da convicção de que não se faz revolução sem poesia, pois é na dimensão poética que o pensamento se desarma e se refaz. A poesia, nesse contexto, não é ornamento nem fuga, mas o próprio motor sensível da ação política. É ela que permite aos personagens reimaginar o mundo, reconfigurar o cotidiano e romper o discurso automatizado das ideologias. A espera pelo livro de Maiakóvski simboliza essa busca por uma palavra que reacenda o fogo da transformação, ainda que o gesto poético se revele mais potente que o conteúdo do livro em si. Assim, a

 

obra afirma que toda revolução verdadeira precisa nascer do encontro entre a lucidez crítica e a delicadeza da imaginação.

A iluminação, de Luis Seixas, acompanha o tempo suspenso dessa espera, oscilando entre a penumbra e a luz dura, como se o palco respirasse a ansiedade do não acontecimento. Quando o livro finalmente chega, a cena já revelou o essencial: o impulso revolucionário não virá de fora, não será inspirado por um poeta distante, mas precisa ser gestado na própria ação, no agora.

 

 

A música, no espetáculo, não surge como mera ambientação, mas como elemento narrativo que costura as ações e amplia os sentidos da cena. Os intérpretes-músicos incorporam o som como extensão de seus próprios corpos, criando uma dramaturgia sonora que dialoga com o ritmo da espera e com o pulso revolucionário que nunca se concretiza. Cada canção, cada batida ou ruído participa ativamente da construção do enredo, funcionando como comentário crítico, ironia ou impulso poético. O ato de tocar e cantar em cena reforça a noção de coletividade, tornando o palco um espaço de comunhão e resistência. A música, portanto, não apenas acompanha o discurso, mas o produz, tornando-se a voz daquilo que as palavras já não alcançam dizer.

 

 

A presença da comédia dell’arte e das máscaras neutras funcionam como eixo de atuação e fundamento da multiplicidade de personagens no espetáculo. Essa escolha revela uma inteligência cênica que transforma o corpo do ator em território de invenção, permitindo o trânsito entre diferentes tipos e arquétipos sociais. As máscaras, mais do que disfarces, tornam-se dispositivos de ampliação expressiva, desvelando a contradição entre o indivíduo e o coletivo. Cada gesto e cada voz carregam ecos de séculos de teatro popular e político, reafirmando o riso como forma de crítica e sobrevivência. A teatralidade exacerbada da comédia dell’arte dialoga com a própria proposta da obra, que tensiona o ideal revolucionário e o transforma em jogo, mostrando que a revolução também pode nascer da irreverência, da paródia e do exagero.

 

 

O espetáculo estabelece um diálogo direto com a noção de heterotopia proposta por Michel Foucault, ao construir em cena um espaço outro, simultaneamente real e simbólico, onde se refletem as contradições do mundo exterior. A célula revolucionária, com seus objetos precários e seus corpos em suspenso, funciona como uma espécie de espelho distorcido da sociedade, um lugar em que o possível e o impossível convivem. Essa heterotopia teatral abriga tanto a utopia da mudança quanto o fracasso do agir, revelando o teatro como território de resistência e imaginação. Ao transformar o palco em um espaço de espera e de sonho, a Grupo

 

Pano cria uma geografia da dúvida, na qual os limites entre revolução e estagnação, entre ficção e realidade, se embaralham. O espetáculo, assim, torna-se ele próprio uma heterotopia viva, onde o espectador é convidado a habitar o intervalo entre o desejo de transformação e a consciência de que essa transformação precisa começar dentro de cada um.

 

 

A citação ao cachimbo, referência à célebre análise de Michel Foucault sobre a pintura “A traição das imagens” de René Magritte, introduz no espetáculo uma reflexão metalinguística sobre o signo e a representação. Assim como o quadro que afirma “Isto não é um cachimbo” desmonta a ilusão entre o objeto e sua imagem, o espetáculo da Grupo Pano provoca o espectador a questionar a distância entre a ideia de revolução e sua efetiva realização. Ao trazer essa referência, a encenação ironiza a própria condição do teatro como espaço de enunciação e simulacro, lembrando que dizer “revolução” não é o mesmo que fazê-la. O cachimbo, nesse contexto, torna-se metáfora da palavra que se esvazia quando não encontra corpo e ação. Dessa forma, a obra se inscreve no pensamento foucaultiano, revelando o abismo entre discurso e realidade, e transformando esse abismo em matéria poética e crítica.

 

 

A relação com o tempo no espetáculo é marcada por uma tensão entre o movimento e a estagnação, entre o desejo de agir e a permanência na espera. A ideia de quebrar os relógios surge como gesto simbólico de insubordinação frente à lógica produtivista e linear que governa a vida cotidiana. Ao suspender o tempo, os personagens criam um espaço de imaginação e resistência, um intervalo onde a revolução pode ser pensada não como evento futuro, mas como experiência presente. O ato de quebrar o relógio, portanto, não representa o fim do tempo, mas a recusa em viver sob o tempo imposto. É uma tentativa de libertar o corpo e o pensamento da contagem cronológica, instaurando um tempo poético, circular e humano, em que a ação e a espera se confundem. Nesse gesto, o espetáculo propõe uma revolução do próprio ritmo da existência.

 

 

A expressão “Esse mundo ainda é nosso” ergue-se como estandarte da revolução proposta pelo espetáculo, condensando em uma única frase o grito de resistência e pertencimento que atravessa a cena. Mais do que um slogan, essa afirmação funciona como gesto poético e político, lembrando que a transformação não é herança de um passado heroico nem promessa de um futuro distante, mas um ato possível no presente. O espetáculo faz dessa frase um ponto de convergência entre o desencanto e a esperança, entre o riso e a urgência. Quando os personagens a proclamam, mesmo diante do fracasso e da espera, o público é convocado a partilhar a crença de que a revolução, ainda que esgarçada e adiada, continua latente em cada corpo disposto a sonhar e agir.

 

A citação, no bate-papo final, dita por Silviano, à militância do Grupo TUOV, especialmente na figura de Graciela Rodriguez, amplia o campo de leitura do espetáculo e o inscreve em uma tradição de teatro engajado e de resistência cultural no Brasil. Ao evocar o trabalho do TUOV, a Grupo Pano reconhece a força de uma prática artística comprometida com o corpo como lugar de memória e de transformação social. Essa referência não é mero tributo, mas um gesto de continuidade, uma reafirmação de que a arte ainda pode ser um instrumento de consciência e ação política. O diálogo com a trajetória do TUOV ressoa como um lembrete de que a revolução também se faz pela persistência da cena, pela coletividade e pela presença ativa do artista em seu tempo. Nesse encontro entre gerações, o espetáculo se reconhece herdeiro de uma militância estética que transforma o palco em território de luta e de esperança.

 

 

A Grupo Pano, com essa obra, constrói uma visualidade que pensa o teatro como campo de resistência e autocrítica. O espetáculo transforma a inércia em linguagem, o fracasso em poesia e o riso em gesto político. Em um tempo em que a espera parece substituir o agir, “Foi enquanto eu esperava…” devolve ao público a urgência do movimento, mostrando que toda revolução começa quando o palco deixa de ser apenas metáfora e se torna espaço de enfrentamento.


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Crítica – Cabaret dos Mortos – Grupo Pseuda Trupe de Variedades por Rodrigo Morais Leite no 39º Festivale

Cabaret dos Mortos – Grupo Pseuda Trupe De Variedades – foto paullo amarall / FCCR

39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campos/SP.

Cabaret dos Mortos – Grupo Pseuda Trupe De Variedades
Um Tiro na Hipocrisia Reinante
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Rodrigo Morais Leite

É jornalista, historiador e crítico teatral. Atua como professor da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (ETUFBA) e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA.
Rodrigo Morais Leite

Rodrigo Morais Leite






Embora o cabaré, enquanto uma linguagem teatral específica, esteja associado ao teatro alemão, em especial ao período de existência da chamada República de Weimar (1918-1933), suas origens são na verdade francesas, e remotam ao século XV. Uma de suas marcas distintivas tem a ver com o espaço onde as apresentações cabaréticas se dão, permissivos ao consumo de bebidas alcoólicas e petiscos, o que lhe confere um ar de gênero boêmio e proscrito, cuja relação com o público difere sobremaneira do teatro tradicional.

Mas não há dúvida de que a forma pela qual o cabaré é hoje conhecido, relacionada a um teatro de quadros, com números específicos e independentes entre si, é uma criação germânica, que influenciaria inclusive a obra de nomes como Frank Wedekind e Bertolt Brecht, figuras proeminentes do teatro alemão.

É dessa tradição que a Pseuda Trupe de Variedades, um coletivo de artistas da região de São José dos Campos, se apropria, com o espetáculo Cabaré dos Mortos, apresentado neste Festivale à meia-noite do último sábado no Centro de Estudos Teatrais (CET), a famosa “sessão maldita”. A informação a respeito do horário não é gratuita, uma vez que ela se liga tanto ao gênero em que a obra se insere, e sua origem marginal, quando à sua “temática” específica, relacionada à morte, como o título revela.

O uso das aspas se explica porque não se trata de um espetáculo interessado em abordar a morte do ponto de vista filosófico. Longe disso. Ela comparece como uma sugestão formal: conforme proclama o mestre de cerimônias da noite, que no cabaré recebe o nome de conferencista, ao adentrar no espaço cênico o público estaria sendo levado para o hades, o inferno na mitologia grega, que pouco ou nada se assemelha, vale ressalvar, ao inferno judaico-cristão. Nesse sentido, o conferencista encarnaria a figura

de Caronte, o condutor da barca responsável por transportar a alma dos mortos, através dos rios Estige e Aqueronte, para os submundos.

Essa sugestão se reflete em três aspectos de Cabaré dos Mortos: o figurino, a cenografia e a maquiagem utilizada pelo elenco. Em relação ao primeiro, pelo uso de adereços majoritariamente pretos, cor relacionada à morte; ao segundo, pelas reproduções de caveiras e ossos humanos posicionados na parte frontal do espaço cênico; ao terceiro, pelos rostos cobertos de pintura branca, com variações características, que conferem aos atuadores traços fantasmagóricos.

A inspiração para a composição de Cabaré dos Mortos, como informa um dos diretores do trabalho (Carlos Rosa), vem do cabaré berlinense As Catacumbas, em atividade entre o final da República de Weimar e o começo do Terceiro Reich (1929-1935), que se notabilizou por abrigar, em plena era de ascensão nazista, artistas perseguidos pela extrema-direita alemã. Também serviu de modelo o Cabaré da Morte, de Paris, existente no período da Belle Époque, de onde vêm os motivos fúnebres presentes no espetáculo. Com efeito, se poderia afirmar, a partir desses dados, que o primeiro contribui com a obra em debate pela sua faceta política, ao passo que o segundo pela sua compleição estética de cunho macabro. Do ponto de vista político, o alvo da sátira desenvolvida em Cabaré dos Mortos, como outrora acontecera na Alemanha, é a extrema-direita, ainda que em outro contexto histórico e geográfico (mas nem                                                   tanto assim guardadas as devidas proporções). Lá como cá, o mesmo ódio à diferença, a mesma repulsa aos que se desviam de uma determinada sexualidade normativa, aos que não comungam, enfim, do lema “Deus, Pátria, Família”, cuja origem no Brasil remonta à pregação ultraconservadora encampada pela Ação Integralista

Brasileira (AIB) na década de 1930, a versão nativa do fascismo italiano.

Com esse propósito em mente, os quadros que compõem o espetáculo, bastante diferentes entre si, são interligados não pela unidade linguística, e muito menos por conta de uma história a ser contada, mas pelo fato de todas, ou quase todas, buscarem provocar o/a espectador pelo aspecto comportamental, ironizando e criticando tudo aquilo que caracteriza a moral fundamentalista cristã, hoje em dia encampada principalmente pelas igrejas neopentecostais, como a heteronormatividade, a homofobia, a transfobia, o

 

machismo, ou seja: tudo o que não se enquadre dentro do fanatismo ascético trombeteado por essas igrejas.

Exemplos mais ostensivos dessa postura, que se pretende um tiro na hipocrisia reinante, seria a cena de sadomasoquismo (simulado, claro), apresentada com requintes hierofílicos, e a cena em que a atriz Sílvia King canta uma espécie de “canção da frigidez”, pungente e engraçada, sobre a castração sexual feminina no contexto de uma sociedade patriarcal.

Por se tratar de um trabalho composto de quadros, é natural que haja uma certa irregularidade entre eles, alguns “funcionando” melhor do que outros, embora isso também dependa muito do gosto do freguês, palavra aqui perfeitamente cabível pelas razões expostas no início desta reflexão. Palhaçaria, bufonaria, lira acrobática, canto coral uníssono são algumas das manifestações cênicas e musicais que comparecem em Cabaré dos Mortos. E outras ainda poderiam comparecer, pois a versão apresentada pelo coletivo no Festivale, devido ao horário da sessão, foi reduzida consideravelmente, com a retirada de alguns quadros.

Contando com um elenco bastante heterogêneo, formado de atores, cantores, músicos e dançarinos, em Cabaré dos Mortos cada integrante contribui com aquilo que sabe fazer de melhor (no âmbito da linguagem com a qual possui maior intimidade), o que garante ao espetáculo um nível técnico muito bom. Ressalte-se também a alegria de assistir a uma obra que congrega um total de quatorze talentosos artistas em cena, algo raríssimo no teatro produzido hoje em dia, cada vez mais depauperado economicamente. De resto, fica aqui registrada a esperança, talvez vã, de que a Pseuda Trupe, de um coletivo esporádico, torne-se um grupo estável, o caminho mais adequado para que a pesquisa desenvolvida em Cabaré dos Mortos não se interrompa, o que seria uma pena.


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Crítica – Tudo a Fazer – Grupo Cia Azul Celeste por Bob Sousa no 39º Festivale

Tudo A Fazer – Grupo Cia Azul Celeste – foto paullo amarall / FCCR

39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campo/SP.

Tudo A Fazer – Grupo Cia Azul Celeste
Qual é a saída?
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É fotógrafo, pesquisador e doutorando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp (com orientação da Profª Drª Simone Carleto Fontes), onde também obteve o título de mestre em Artes. É jurado de Teatro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes – e de Artes Visuais do Prêmio Arcanjo de Cultura. Autor do livro Retratos do teatro (Editora Unesp).
Bob Sousa

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Em “Tudo a fazer”, apresentado no Teatro Municipal de São Jose dos Campos na 39ª Edição do FestiVale, a visualidade se constrói como campo filosófico e como experiência sensorial de suspensão. O beco, escolhido como espaço de encenação, torna-se extensão simbólica da existência humana. É o não-lugar por excelência, entre a saída de serviço do teatro e a rua, entre a arte e a vida, entre o sentido e o absurdo. A cenografia concebida por Jorge Vermelho opera nesse limiar, instaurando uma paisagem de transição onde o espectador é convocado a refletir sobre o próprio ato de esperar, observar e existir.

 

 

A narrativa visual emerge do encontro improvável entre Godot e Samuel Beckett. Essa bricolagem dramatúrgica, guiada por Alexandre Manchini Jr. e Jorge Vermelho, compõe uma tessitura intertextual que reverbera ecos de Dante, Camus, Kafka e Arendt. Cada citação se inscreve não apenas na palavra, mas na matéria visível da cena. Em dado momento, as projeções de Vinícius Dal’Acqua incorporam fragmentos de pensamento que se tornam imagem em movimento. O vídeo deixa de ilustrar para instaurar outro plano de presença, dialogando com corpos e sombras, com a concretude do espaço urbano.

 

 

A direção de Georgette Fadel e Jorge Vermelho trabalha a visualidade como provocação. O uso da luz, desenhada por Luis Fernando Lopes, não apenas ilumina, mas rasga o espaço, revelando o invisível. Há algo de metafísico na forma como a iluminação alterna claridade e penumbra, expondo os personagens à dúvida, à vertigem e à solidão.

 

 

A iluminação assume papel decisivo como elemento dramatúrgico, articulando sentidos que ultrapassam a simples visibilidade da cena. A concepção luminotécnica cria um embate visual entre sombra e claridade, materializando o confronto filosófico entre Godot e Beckett. Enquanto Beckett permanece sob a luz, revelado e exposto, Godot habita a penumbra, como se fosse uma presença espectral, uma ideia em busca de corpo. Essa escolha visual estabelece uma hierarquia simbólica que inverte a lógica original do texto beckettiano, em que Godot é o ausente. Aqui, ele está presente, mas velado.

O contraste entre o iluminado e o oculto transforma a luz em linguagem. Beckett, visível, torna-se a consciência, o autor que interroga o próprio sentido da criação. Godot, encoberto, representa o mistério, a espera, aquilo que nunca se revela completamente. A luz, portanto, não apenas mostra, mas narra. Ela desenha o pensamento em cena, conduzindo o olhar do espectador entre o real e o imaginário.

 

 

Há momentos em que a penumbra de Godot parece pulsar, sugerindo que o invisível também tem presença. A sombra torna-se personagem, densidade e silêncio. A luz sobre Beckett, em contrapartida, cria uma exposição quase cruel, como se o criador estivesse condenado à lucidez. Essa construção visual reforça o eixo temático da obra: a tensão entre o ser e o não-ser, entre a palavra e o vazio, entre o que se ilumina e o que insiste em permanecer oculto.

 

 

O grande luminoso com a palavra “Saída”, suspenso sobre a encenação, atua como signo visual de potente ambiguidade. Em sua aparente simplicidade, o letreiro adquire força simbólica e filosófica. É um convite e uma ironia. Indica uma direção possível, mas num contexto onde a própria ideia de saída se dissolve. A palavra brilha sobre os corpos como promessa e impossibilidade, como se a iluminação artificial substituísse a luz do entendimento.

 

 

Na dramaturgia visual, esse elemento funciona como eixo de leitura do espaço. Ele tensiona o sentido de limiar presente na encenação, pois o espetáculo se dá justamente na fronteira entre o dentro e o fora, entre o teatro e a rua, entre a ficção e o real. O letreiro “Saída” não indica apenas um caminho físico, mas também um desejo metafísico de transcendência, de ruptura com o absurdo beckettiano.

 

 

Ao iluminar o beco, o luminoso instaura um paradoxo. A saída está ali, evidente, mas ninguém parece capaz de alcançá-la. É nesse intervalo que a visualidade encontra sua potência poética. A palavra flutua sobre os atores como uma epifania suspensa, reafirmando a condição humana de estar sempre a caminho, sempre à beira de partir e nunca de fato sair.

 

 

O figurino de Godot, também de Vermelho, tensiona o espectro do real, expondo o excesso e afirmando o corpo como signo. Cada peça parece conter a poeira do caminho, o desgaste do tempo, o peso da espera. O visagismo de Gaia do Brasil completa essa construção poética, ampliando o gesto, o olhar e a expressão como matéria plástica. A sonoplastia, criada por Vermelho em parceria com Murilo Gussi e André Clínio, reforça a sensação de eco interior, como se o som fosse pensamento.

 

A relação com a obra “O último Godot”, de Matéi Visniec, é o eixo conceitual e poético que sustenta a dramaturgia de “Tudo a fazer”. No texto de Visniec, o autor propõe um reencontro entre Beckett e seu próprio personagem, numa espécie de acerto de contas entre criador e criatura. O espetáculo de Alexandre Manchini Jr. e Jorge Vermelho amplia esse gesto metateatral, deslocando o debate para o campo da visualidade e da experiência cênica brasileira. Assim, o diálogo entre Godot e Beckett passa a existir no corpo, na luz e no espaço de um Brasil em conflito com a arte e seus artistas.

 

 

Em “O último Godot”, Visniec questiona o sentido da espera e a própria condição do teatro contemporâneo. Em “Tudo a fazer”, essas questões se corporificam no beco que serve de palco. A escolha desse espaço urbano é uma tradução visual da incompletude presente na escrita de Visniec. O beco é o lugar do impasse, daquilo que não chega a se resolver. A encenação reinscreve essa lógica do inacabado, transformando a cena em metáfora da própria busca de sentido.

 

 

A obra de Visniec é também uma reflexão sobre o papel do artista diante do tempo e da história. Na encenação, esse pensamento encontra corpo no gesto dos atores e no olhar do coro/transeuntes. A fronteira entre ficção e realidade, essencial em “O último Godot”, se atualiza na cena viva, onde a espera já não é mais apenas de personagens, mas também de um público que partilha do mesmo impasse.

 

 

A presença do coro, formado por participantes locais, cria uma camada comunitária de sentido. Esses corpos inscrevem no espetáculo uma textura de realidade. O olhar deles, que é também o olhar do público, tensiona a fronteira entre representação e acontecimento.

 

 

A ideia de um Godot que rompe a coxia para debater o “lixo do teatro”, da cultura e do pensamento crítico é um dos gestos mais contundentes da obra. Essa ruptura simboliza a saída da personagem do espaço da ficção para o território do real. Godot deixa de ser o ser esperado para tornar-se aquele que volta, aquele que cobra, aquele que pensa. Ao atravessar a coxia, ele rasga a membrana que separa o palco da vida e denuncia o esvaziamento simbólico que atravessa o fazer artístico contemporâneo.

 

 

O discurso sobre o “lixo do teatro” não é apenas provocação, mas uma autocrítica

que devolve ao público a responsabilidade pelo estado da arte e da cultura. Godot,

 

ao falar desse lixo, não se refere apenas aos restos materiais, mas aos resíduos de pensamento, às repetições estéticas, à falta de risco e de inquietação. Sua fala é a tentativa de recolher o que foi descartado: a potência do pensamento crítico, a coragem da invenção, o sentido de comunidade que o teatro historicamente abrigou.

 

 

Essa ação cênica transforma o personagem em porta-voz do desencanto, mas também em arauto da possibilidade de renascimento. O beco onde a cena se passa amplia essa metáfora, tornando-se espaço de resíduos e recomeços. Ao emergir dali, Godot surge como corpo que atravessa os limites, misto de profeta e catador, que revisita os escombros da cultura em busca de sentido.

 

 

A visualidade desse momento reforça o impacto simbólico do gesto. As luzes frias e o ambiente árido acentuam a sensação de desolação, enquanto a presença do público, em proximidade física, cria um campo de tensão e cumplicidade. Assim, “Tudo a fazer” não apenas revisita Beckett e Visniec, mas faz do próprio teatro uma questão urgente. O Godot que retorna da coxia é também o espectador, o artista e o cidadão que precisam, mais uma vez, decidir o que ainda vale ser dito, visto e pensado.

 

 

A falha nos microfones, durante a apresentação, interferiu de modo perceptível na tessitura sonora da obra. Em um espetáculo que faz do som um elemento dramatúrgico e filosófico, cada ruído e cada silêncio têm função estruturante. A sonoridade não atua como mero suporte técnico, mas como camada de pensamento. Por isso, as falhas de captação e amplificação acabaram por quebrar a continuidade sensorial da experiência.

 

 

A ausência intermitente das vozes produziu momentos de dispersão e descompasso entre a palavra e a imagem. O texto, denso e reflexivo, exige escuta atenta, e o ruído técnico impôs uma espécie de ruído conceitual involuntário. Paradoxalmente, essa imperfeição acabou por revelar a fragilidade do próprio ato teatral. Assim como em Beckett e Visniec, o erro se torna parte da cena, denunciando o absurdo de tentar comunicar o incomunicável.

 

 

Ainda que a falha técnica tenha comprometido a clareza da tessitura sonora, o conjunto da encenação manteve sua força poética. O público, atento, acabou por preencher as lacunas do som com o próprio olhar, transformando o silêncio em matéria de reflexão. Nesse sentido, a falha não apenas prejudicou, mas também

 

ressignificou o acontecimento, reafirmando a condição precária e efêmera que é própria do teatro.

 

 

“Tudo a fazer” é um espetáculo que propõe a cena como pensamento visual. O encontro entre Godot e Beckett, antes impossível, ganha forma na tensão entre a palavra e a imagem. A visualidade não serve ao texto, mas o atravessa, revelando que toda filosofia é também uma experiência sensível. No beco iluminado, a espera se converte em arte e o absurdo, em beleza. A busca para achar uma saída. Nada a fazer?


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Crítica – Solteira Sim, Sozinha Nunca,Teatro do Imprevisto por Bob Sousa no 39º Festivale

Solteira SIm, Sozinha Nunca – Grupo Teatro do Imprevisto – foto paullo amarall / FCCR

39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campo/SP.

Solteira Sim, Sozinha Nunca – Grupo Teatro do Imprevisto
Quando a cena respira o que a vida inventa
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Bob Sousa

É fotógrafo, pesquisador e doutorando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp (com orientação da Profª Drª Simone Carleto Fontes), onde também obteve o título de mestre em Artes. É jurado de Teatro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes – e de Artes Visuais do Prêmio Arcanjo de Cultura. Autor do livro Retratos do teatro (Editora Unesp).
Bob Sousa

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A encenação de Solteira Sim, Sozinha Nunca propõe uma experiência visual que combina tradição e contemporaneidade. Partindo da linguagem do teatro de mamulengos, a montagem conduz o espectador a um universo em que o popular se torna crítica social e o lúdico se converte em ferramenta política. A história da boneca Maricota, que foge de um casamento arranjado e retorna para reivindicar sua herança, é o ponto de partida para uma reflexão sobre a condição feminina, a autonomia das mulheres e a persistência do machismo em espaços culturais e simbólicos ainda marcados por estruturas patriarcais.

 

 

A visualidade do espetáculo emerge da justaposição entre o humano e o boneco. Cibele Tomaz, Jorge Peronelli, Ricardo Salem e Vivian Rau movimentam seus corpos e manipulam as figuras de madeira com destreza e afeto, fazendo da fronteira entre corpo e objeto um campo de invenção. Essa transição contínua entre o real e o imaginário cria uma cena pulsante, em que a manipulação é também gesto cênico e expressão dramatúrgica. O figurino colorido e as formas caricatas dos bonecos dialogam com o imaginário do mamulengo, mas rompem com a tradição quando colocam a mulher no centro da narrativa e subvertem o papel feminino que outrora era motivo de riso ou submissão.

 

 

A cenografia, concebida por Ricardo Salem, remete a uma feira ou festa popular, criando um espaço que convida à celebração e à crítica. O uso de elementos artesanais, tecidos estampados e pequenas estruturas móveis reforça o caráter itinerante e coletivo da linguagem do mamulengo. A música ao vivo, dirigida por Vivian Rau, atravessa a encenação como fio condutor e sustenta o ritmo das ações. O som dos tambores e do triângulo costura as cenas, transformando o palco em um terreiro de encontro e resistência.

 

 

Há, na narrativa visual do espetáculo, uma dimensão ritual. O humor, a música e o improviso criam momentos de comunhão entre artistas e plateia. Os bonecos dialogam com o público, rompendo a ilusão teatral e aproximando a cena da rua, da feira, do espaço popular. Essa interação direta reativa o caráter democrático do mamulengo, ao mesmo tempo em que reconfigura seu discurso. O riso não é apenas

um efeito de comicidade, mas um modo de desarmar preconceitos e abrir espaço para o questionamento.

 

 

A direção de Ricardo Salem, com orientação da Mestra Titinha, assume o desafio de atualizar uma linguagem tradicional sem esvaziar seu sentido comunitário. A visualidade nasce do entrelaçamento de memórias: a do mamulengo como herança popular e a das mulheres que, como Maricota, ainda lutam para ter voz e poder de decisão sobre suas próprias vidas. A dramaturgia revisitada em 2025 transforma o palco em espelho das transformações sociais e culturais que atravessam o Brasil contemporâneo.

 

 

Na apresentação realizada na Praça do Sapo, na 39ª Edição do FestiVale, a harmonia do improviso revelou-se como extensão natural do cotidiano urbano. O espetáculo dialogou com o ambiente vivo da praça, incorporando sons, vozes e movimentos do entorno à sua tessitura cênica. Crianças que corriam, a fila para alimentação popular, pessoas que cruzavam o espaço e o burburinho das conversas formaram uma trilha sonora espontânea que se misturou à música e às falas dos bonecos. Essa fusão entre arte e vida conferiu à encenação um caráter orgânico e coletivo, em que o improviso não era falha, mas potência. A cena se adaptava aos imprevistos e os transformava em matéria poética, reafirmando o mamulengo como teatro do povo e da rua, capaz de acolher o real e devolvê-lo em forma de celebração e reflexão.

 

 

Durante a apresentação, um participante inusitado surgiu e, sem saber, deu nova dramaturgia à cena. Um morador de rua que observava à distância aproximou-se lentamente e começou a interagir com os bonecos, respondendo às falas e improvisando gestos que despertaram risos e apreensão no público. Em vez de interromper o fluxo do espetáculo, o elenco acolheu sua presença com leveza, incorporando-o à narrativa como se fosse um personagem que sempre tivesse estado ali. Esse momento de espontaneidade reafirmou a força do teatro popular, em que a fronteira entre palco e plateia se dissolve, e o acontecimento real se transforma em criação compartilhada. O inesperado tornou-se símbolo da vitalidade do mamulengo, capaz de se reinventar a cada encontro com o público e com a vida que pulsa ao redor.

 

 

A questão do poder feminino atravessa toda a dramaturgia e se afirma também como função social do espetáculo. A trajetória de Maricota, que recusa um casamento imposto e reivindica o direito à própria história, transforma-se em metáfora para a autonomia das mulheres e para a desconstrução de papéis cristalizados pela tradição.

 

A cena não apenas representa o feminino, mas o faz agir, falar e decidir, subvertendo séculos de silenciamento. O poder feminino aqui é construído pela voz, pela presença e pela escolha, tornando-se eixo dramatúrgico e político. Ao propor uma mulher que se emancipa sem perder o humor e a alegria, o espetáculo inscreve-se como ato de resistência, reafirmando o teatro popular como espaço de transformação social. A estética do mamulengo, antes dominada por figuras masculinas, é ressignificada como território de expressão das mulheres e de crítica às estruturas patriarcais ainda persistentes no cotidiano brasileiro.

 

 

Solteira Sim, Sozinha Nunca reinventa a estética do teatro de bonecos e reafirma a potência do olhar popular quando se abre à crítica e à diversidade. O espetáculo constrói uma visualidade que é, ao mesmo tempo, festa e denúncia. Entre a madeira esculpida e o corpo vivo, entre a cantoria e a ironia, emerge uma cena que celebra o feminino e inscreve novas histórias no território do teatro popular brasileiro.


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Crítica – Estou Bem Aqui e Lembrei De Você – Grupo Bando Coletivo, por Bob Sousa no 39º Festivale

Estou Bem Aqui e Lembrei De Você – Grupo Bando Coletivo – foto paullo amarall / FCCR

39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campo/SP.

Estou Bem Aqui e Lembrei de Você – Grupo em Bando Coletivo
Um breve pouso dentro de si
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Bob Sousa

É fotógrafo, pesquisador e doutorando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp (com orientação da Profª Drª Simone Carleto Fontes), onde também obteve o título de mestre em Artes. É jurado de Teatro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes – e de Artes Visuais do Prêmio Arcanjo de Cultura. Autor do livro Retratos do teatro (Editora Unesp).
Bob Sousa

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O espetáculo Estou Bem Aqui e Lembrei de Você, apresentado na 39ª edição do FestiVale, propõe uma experiência singular ao transformar a cidade em matéria poética. Criado pelo Em Bando Coletivo, o trabalho se inscreve na linguagem do áudio tour ficcional, onde o público percorre as ruas com fones de ouvido, guiado por uma narrativa que se mistura às sonoridades e paisagens urbanas. A Praça da Matriz se converte em ponto de partida e em palco vivo. O espectador, ao caminhar, atravessa camadas de tempo e memória, entrelaçando ficção e realidade em uma dramaturgia sensorial, guiados pela voz de Luma Eckert.

 

 

A construção da visualidade do espetáculo se dá justamente na ausência de imagens concretas. A narrativa visual emerge da escuta. O som convoca o olhar. Cada esquina, fachada ou sombra se torna parte da encenação, revelando uma estética da presença e da imaginação. O percurso pela cidade transforma o espaço cotidiano em cenário simbólico, e a palavra em lente que reposiciona o olhar sobre o urbano. Assim, a visualidade não está em um cenário montado, mas naquilo que o público vê ao ser guiado pela voz. A cidade se torna um grande dispositivo visual, onde cada elemento arquitetônico é reinterpretado pela potência do som.

 

 

O enredo, centrado na neta que refaz os passos da avó, é também uma travessia afetiva entre gerações. A dramaturgia original de João Lirio e Marcus Di Bello adquire um sentido de continuidade e homenagem, revelando uma delicada articulação entre lembrança e presença. O corpo ausente da avó se refaz na paisagem, nas vozes que ecoam, nas respirações que o público acompanha. A performance convida a um gesto de escuta atenta, em que a cidade sussurra suas próprias histórias e o passado se refaz na caminhada. A produção é de Jamili Limma, com assistência de Felippe Salve.

 

 

A cartografia em movimento proposta ultrapassa a ideia de mapa fixo e geografia estável. O percurso traçado pela dramaturgia sonora se transforma a cada passo do público, que redesenha o território com o corpo e com a escuta. Essa cartografia sensível não busca orientar, mas desorientar, abrindo brechas para que o espaço urbano seja percebido como um organismo vivo e mutável. A caminhada se torna um gesto de escrita efêmera sobre o chão da cidade, uma forma de reinscrever memórias

e afetos no espaço coletivo. Cada trajeto é único, pois depende do ritmo, do olhar e da imaginação de quem o percorre, convertendo a experiência em uma geografia poética que se desenha no tempo do presente.

 

 

A construção poética se ancora na delicada percepção de que as pessoas vão, mas as memórias ficam. O espetáculo transforma essa ideia em experiência sensorial, fazendo da ausência uma forma de presença. As vozes que ecoam nos fones de ouvido reconstituem rastros de vidas que atravessaram as mesmas ruas, como se a cidade guardasse em suas paredes e calçadas as lembranças daqueles que partiram. A poética do trabalho reside nesse entrelaçamento entre o efêmero e o permanente, em que a passagem do tempo é percebida não como perda, mas como continuidade. A memória, nesse contexto, não é estática, mas viva, capaz de se reatualizar a cada escuta, a cada passo, a cada olhar que reconhece no espaço urbano a persistência de quem já não está.

 

 

Estou Bem Aqui e Lembrei de Você dialoga profundamente com as reflexões de Michel de Certeau em A Invenção do Cotidiano, especialmente na ideia de que caminhar é um ato poético e político de reescrita do espaço. Assim como Certeau vê o pedestre como um narrador que inscreve histórias na cidade com seus passos, o espetáculo propõe uma dramaturgia que se constrói na relação entre o corpo e o território. O público, ao percorrer as ruas guiado pela escuta, reinventa a paisagem urbana e transforma trajetos comuns em percursos de imaginação e memória. Essa aproximação revela que o cotidiano, muitas vezes invisível, é também campo de criação e resistência. A performance evidencia que habitar a cidade é uma forma de narrá-la, e que cada passo pode ser um gesto de invenção, capaz de transformar o espaço vivido em experiência estética e afetiva.

 

 

A obra se constrói dentro de cada pessoa que a vivencia. O espetáculo não oferece uma narrativa fechada, mas um campo aberto de sensações, lembranças e imagens que se formam na interioridade do ouvinte. À medida que o público caminha, o som desperta memórias pessoais que se misturam à ficção, criando uma dramaturgia íntima e invisível. A cidade deixa de ser apenas cenário e se torna extensão do corpo e da escuta, enquanto a voz narradora atua como um fio que costura o dentro e o fora, o vivido e o imaginado. Cada espectador compõe sua própria versão do espetáculo, fazendo da experiência uma criação compartilhada e, ao mesmo tempo, profundamente individual. Parte dessas experiências foram articuladas pelos participantes ao final da caminhada.

 

A experiência ganha uma dimensão ainda mais íntima quando coincide com o dia do meu aniversário, como um gesto de pouso em mim mesmo. Caminhar pela cidade nesse dia, guiado por vozes que falam de memória, tempo e ausência, é como revisitar minha própria trajetória em silêncio. O espetáculo se torna espelho e rito, um convite a celebrar não o que passa, mas o que permanece. A cada esquina, a escuta revela fragmentos de vida que se entrelaçam às lembranças pessoais, e o percurso transforma-se em uma travessia interior. Há algo de rito de passagem nessa experiência, como se o ato de caminhar e ouvir fosse também o de renascer em meio à cidade que acolhe, guarda e devolve ecos da própria existência.

 

 

Estou Bem Aqui e Lembrei de Você é uma experiência sobre o tempo, o espaço e a memória. Um convite a caminhar com os ouvidos e ver com a lembrança. A cidade, nesse percurso, deixa de ser cenário para se tornar personagem, presença viva que acolhe a ficção e devolve ao público um espelho de si mesmo.

 


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Crítica – VENENO – Grupo: Teatro Estúdio por Rodrigo Morais Leite no 39º Festivale

VENENO – Grupo: Teatro Estúdio – Produções Artísticas – foto paullo amarall /FCCR

39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campos/SP.

VENENO – Grupo: Teatro Estúdio:
Dentro da linguagem dramática, Veneno é um depurado espetáculo acerca do luto
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Rodrigo Morais Leite

É jornalista, historiador e crítico teatral. Atua como professor da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (ETUFBA) e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA.
Rodrigo Morais Leite

Rodrigo Morais Leite






O luto é um assunto recorrente em diversas manifestações artísticas, dentre as quais se incluiriam o cinema, a literatura e o teatro. Embora existam inúmeras formas de luto, relacionadas ao tipo de perda que a ele associa (um primo, um amigo ou uma tia, por exemplo), muito provavelmente a mais tematizada, por ser a mais dolorosa, é a perda de um/a filho/a. O motivo é simples: ao contrário da morte de um pai ou de uma mãe, algo que, bem ou mal, faz parte do ciclo da vida, a morte de um/a filho/a é antinatural, por romper esse ciclo.

Com efeito, superar a partida de alguém tão próximo, e que ainda por cima estaria destinado a enterrar seus progenitores quando a velhice deles chegasse, é quase impossível, senão impossível. É disso de que se trata o espetáculo Veneno, produção do Teatro Estúdio de São Paulo dirigida por Eric Lenate e protagonizada por Cléo de Páris e Alexandre Galindo. O texto encenado, um drama em quatro atos produzido pela dramaturga holandesa Lot Vekemans, jamais havia sido montado no Brasil, e vem revelar, para nós, uma escritora de talento, cujo conhecimento esbarra no fato de escrever em uma língua pouco divulgada fora das fronteiras de sua terra natal.

O enredo não é difícil de resumir: dez anos após a morte do filho, atropelado por um motorista imprudente, os pais se encontram novamente, numa sala contígua a um cemitério, com a missão de remover de lá os restos mortais do menino, devido à contaminação do solo onde está seu jazigo. A separação do casal foi uma iniciativa do marido, que, abalado pelo acontecimento, abandonou a esposa para iniciar uma nova vida na França, onde passou a residir e onde está em vias de formar uma nova família (a segunda esposa está grávida).

Uma vez confinados no local, pois ninguém aparece para lhes dar satisfação, o casal inicia uma densa (e dura) conversa, na qual uma série de mágoas de parte a parte são reveladas, relacionadas, principalmente, ao modo como cada um procurou superar seu próprio luto. Aos poucos, começa a aparecer, por intermédio dos diálogos, uma discreta mas perceptível oposição: enquanto ele, de algum modo, conseguiu dar continuidade à sua vida, ao se estabelecer em outro país e se dispor a um novo matrimônio, ela, por seu turno, estagnou, incapaz de se livrar do estupor advindo do trauma.

Assim resumida, pode parecer, à primeira vista, que se está diante de um drama com influências do dramaturgo sueco August Strindberg (1849- 1912), em que as personagens se digladiariam até que uma delas, quase sempre o homem, destruísse psicologicamente a outra, impondo sua força diante da fragilidade da oponente. Mas Lot Vekemans, ainda bem, não é Strindberg, e não é nada disso que acontece, pelo contrário: à medida que o diálogo avança, o atrito inicial vai dando lugar, aos poucos, a uma convergência de sentimentos, a ponto de no final, irmanados pela dor comum, os dois de certo modo se reconciliarem.

Valendo-se ainda de uma outra comparação, agora em relação ao cinema, se pode afirmar que Veneno seria o negativo do filme Anticristo, do cineasta dinamarquês Lars Von Trier. Tanto em uma como eu outra obra têm-se um casal afetado pelo falecimento do filho. A diferença é que, no filme, ao invés de se separarem, os consortes se isolam do mundo, para a partir daí iniciarem uma sádica jornada expiatória. Curiosamente, as duas obras são de 2009.

Em Veneno, não há expiação, pois se sabe de antemão que ela não é alcançável. A dor pela morte do menino, bem como o aborto causado por ela à relação do casal, são irreparáveis. Mas há companheirismo, solidariedade, expresso na noção de que o padecimento, se não pode ser eliminado, pode ao menos ser aplacado pela reciprocidade afetiva.

Do ponto de vista cênico, Veneno é uma obra que assume uma proposta minimalista: a cenografia é composta, basicamente, de uma mesa posicionada no centro do palco, algumas cadeiras em volta e um bebedouro no canto. Nada além disso. O espetáculo também abdica de utilizar luz teatral,

 

pois a iluminação é feita com lâmpadas tubulares comuns, instaladas acima da mesa.

Abdicando de qualquer aparato cênico, Veneno só poderia mesmo se sustentar no trabalho dos atores que interpretam o malfadado casal. Verdadeiro bálsamo para os olhos e ouvidos do público, nele reside a beleza da obra, fascinante pela precisão e pelo requinte das atuações. Dentro de uma atmosfera que costuma menosprezar o teatro dramático, pejorativamente apontado como “teatrão”, impressiona o preparo do elenco ao lidar com essa forma de expressão teatral calcada na força da palavra, nas pausas, nos ditos e subentendidos previstos no texto. Pelo seu aspecto dramático, e por reduzir os meios expressivos ao mínimo, Veneno poderia ser classificado como um ótimo exemplar daquilo que se costuma chamar “teatro de câmara”.

Por todos esses motivos, não surpreende que o público presente no Centro de Estudos Teatrais (CET), onde ocorreu a apresentação, se emocionasse tanto com a obra. Embora o assunto, por si só, tenha potencial para comover o mais insensível dos seres humanos, é o seu tratamento, a forma como ele é desenvolvido dramatúrgica e cenicamente, o verdadeiro responsável pelo seu impacto, que fazem de Veneno um trabalho de excelência.


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Crítica – Espetáculo 2 Mundos, por Bob Sousa no 39º Festivale

2 Mundos, da Companhia Lumiato Teatro de Formas Animadas – foto paullo amarall / FCCR

39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campo/SP.

2 Mundos, da Companhia Lumiato Teatro de Formas Animadas
Iluminando o pensamento crítico pela força da visualidade
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Bob Sousa

É fotógrafo, pesquisador e doutorando em Artes Cênicas no Instituto de Artes da Unesp (com orientação da Profª Drª Simone Carleto Fontes), onde também obteve o título de mestre em Artes. É jurado de Teatro da APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes – e de Artes Visuais do Prêmio Arcanjo de Cultura. Autor do livro Retratos do teatro (Editora Unesp).
Bob Sousa

Bob Sousa






O espetáculo 2 Mundos, da Companhia Lumiato Teatro de Formas Animadas, apresentado no Cine Santana durante a 39ª Edição do FestiVale, reafirma a potência do teatro de sombras como linguagem contemporânea capaz de discutir temas complexos e universais. A montagem transforma o espaço cênico em um território simbólico, onde o confronto entre culturas ganha corpo por meio da luz, da forma e da ausência de palavras.

 

Inspirado em processos históricos de colonização, o espetáculo ultrapassa a dimensão factual para tocar o plano sensível e humano do encontro entre civilizações. A visualidade construída pela Cia. Lumiato é rigorosa e ao mesmo tempo poética, composta por figuras geométricas que remetem à estética cubista. Essa escolha estética fragmenta o olhar do espectador, permitindo que a multiplicidade de perspectivas revele a impossibilidade de uma narrativa única sobre o passado e o presente.

 

A experiência sensorial proposta pelo grupo rompe a barreira tradicional entre público e cena. Ao convidar o espectador a adentrar o espaço performativo, 2 Mundos o coloca dentro de uma atmosfera em que o som, as sombras e a luz constroem camadas de significação. O corpo dos atuadores se dilui entre figuras projetadas e volumes translúcidos, criando uma dramaturgia visual que se sustenta no ritmo e na composição imagética.

 

O público é convidado a ocupar o palco, tornando-se parte da cena e da atmosfera criada pelas sombras. Duas grandes telas delimitam o espaço e representam os dois mundos em questão: de um lado, a Europa; de outro, as Américas. Entre elas, uma terceira tela funciona como passagem, metáfora visual do mar que conecta e separa ao mesmo tempo, lembrando que o oceano foi tanto rota de descobertas quanto de violências e deslocamentos. Essa disposição espacial cria uma imersão sensorial que amplia o sentido de travessia e pertencimento.

 

A tridimensionalidade da estética cubista, incorporada à encenação de 2 Mundos, dialoga com a bidimensionalidade das imagens projetadas e produz um jogo visual que desafia a percepção do espectador. As figuras geométricas, fragmentadas e sobrepostas, criam uma ilusão de profundidade que tensiona o plano das telas, fazendo com que as sombras pareçam emergir e se dissolver no espaço. Essa fricção entre o volume sugerido e a superfície projetada amplia a experiência sensorial do teatro de sombras, deslocando-o do mero plano bidimensional para um campo expandido de visualidade. O resultado é uma composição que transforma luz e forma em matéria viva, instaurando uma poética do movimento entre o real e o imaginado.

As influências de Pablo Picasso e Tarsila do Amaral atravessam a visualidade de 2 Mundos e dialogam diretamente com a proposta estética da Cia. Lumiato. De Picasso, o espetáculo herda a fragmentação cubista, que rompe com a perspectiva linear e permite observar simultaneamente múltiplos ângulos de uma mesma realidade. Essa multiplicidade visual reflete o confronto entre culturas e o entrelaçamento de tempos históricos, transformando a cena em um espaço de tensão e reconstrução simbólica. De Tarsila, emerge o olhar latino-americano que ressignifica o modernismo europeu, inserindo cores, formas e imaginários que traduzem a experiência colonial e suas heranças. Essa combinação entre o cubismo europeu e a brasilidade de Tarsila cria uma poética híbrida, em que as sombras projetadas assumem o papel de telas vivas, misturando ancestralidade e modernidade, denúncia e encantamento.

 

A ausência de fala não representa um vazio, mas sim um gesto de escuta. As sombras tornam-se vozes, e as formas em movimento evocam a memória coletiva de um mundo marcado por conquistas e violências. Nesse silêncio, a narrativa se faz universal, permitindo que o público reconheça em si mesmo os dilemas éticos e emocionais que atravessam a humanidade em tempos de conflito.

 

A técnica e a sincronicidade de Soledad Garcia e Thiago Bresani são elementos fundamentais na construção da linguagem visual de 2 Mundos. O domínio da manipulação das sombras revela um rigor coreográfico que transcende a simples execução técnica, convertendo o gesto em expressão dramática. Cada movimento é milimetricamente calculado, mas ainda assim carrega uma organicidade que faz das figuras projetadas presenças pulsantes. A harmonia entre os dois intérpretes cria uma coreografia silenciosa em que corpo, luz e objeto se fundem, sustentando a fluidez narrativa do espetáculo. Essa precisão compartilhada transforma a manipulação em poesia visual, consolidando o trabalho da dupla como uma verdadeira dança de sombras que respira e se move em uníssono.

 

A linguagem cinematográfica permeia a encenação de 2 Mundos, ampliando o alcance da narrativa visual e criando uma temporalidade própria dentro do espaço teatral. Os enquadramentos precisos, as transições entre planos e o uso do foco e do desfoque remetem à gramática do cinema, transformando o olhar do espectador em uma lente que se desloca entre o macro e o micro. A alternância entre cenas de grande escala e composições mais íntimas confere ritmo e tensão à dramaturgia das sombras, como se cada imagem fosse um fotograma em movimento. Essa aproximação entre o cinema e o teatro de sombras produz uma experiência híbrida, em que o tempo é editado pela luz e o espaço se torna tela, fundindo o sensorial e o imagético em uma mesma respiração poética.

 

Na obra, a relação entre luz e sombra assume um papel de descolonização do pensamento, rompendo com as hierarquias tradicionais do olhar ocidental que opõem clareza e obscuridade. A Cia. Lumiato transforma a sombra, muitas vezes

 

associada à ausência, em potência criadora e espaço de revelação. A luz deixa de ser instrumento de dominação visual e passa a coexistir com a escuridão, instaurando um campo de ambiguidade onde múltiplas narrativas podem emergir. Nesse jogo, o espetáculo propõe uma revisão sensorial da história, convidando o público a enxergar não apenas o que é iluminado, mas também o que foi silenciado. A estética das sombras torna-se, assim, uma prática simbólica de resistência, capaz de iluminar as zonas esquecidas da memória coletiva e questionar os modos coloniais de ver e representar o mundo.

 

Em 2 Mundos, o teatro de sombras não é apenas técnica, mas linguagem poética e política. O espetáculo convida à reflexão sobre a alteridade e o poder, sobre os limites do olhar e sobre a necessidade de reconhecer o outro como espelho. Assim, a Cia. Lumiato constrói uma obra que une rigor estético e profundidade simbólica, reafirmando a força da visualidade como forma de pensar o mundo e suas contradições.


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Crítica – Ópera Febril por Rodrigo Morais Leite no 39º Festivale

Ópera Febril – Grupo: Cia Do Trailler / Teatro Em Movimento – foto paullo amarall / FCCR

39º FESTIVALE – O Festivale é um dos mais tradicionais festivais de teatro do país. E realizado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo em São José dos Campos /SP.

Ópera Febril, da Cia. do Trailler
é obra que propõe um difícil equilíbrio entre razão e sensibilidade.
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Rodrigo Morais Leite

É jornalista, historiador e crítico teatral. Atua como professor da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (ETUFBA) e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA.
Rodrigo Morais Leite

Rodrigo Morais Leite






Ópera Febril, da Cia. do Trailler, é obra que propõe um difícil equilíbrio entre razão e sensibilidade.

 

Rodrigo Morais Leite 1

O espetáculo Ópera Febril, da Cia. do Trailler – Teatro em Movimento, dá continuidade à pesquisa empreendida pelo grupo desde 2019, ano de estreia do ótimo Experimento: Desterro.Doc, atrelada à linguagem do teatro documentário (ou documental, como preferem alguns). Trata-se de uma linguagem, como a própria expressão revela, na qual a obra se constrói a partir da seleção e exposição em cena de fontes documentais autênticas, expediente que lhe confere um lastro direto e objetivo com uma determinada realidade.

As raízes mais remotas dessa vertente teatral, interessada em pulverizar os limites que separam ficção e realidade, encontram-se no movimento naturalista europeu, que vicejou na segunda metade do século retrasado com repercussão em muitos países não-europeus, incluindo o Brasil. Sua conformação “definitiva”, contudo, é normalmente atribuída ao encenador alemão Erwin Piscator, que na primeira metade do século XX procurou articular em seus espetáculos um amplo aparato documental, quase sempre exposto ao público por meio de projeções cinematográficas.

A estética teatral burilada pela Cia. do Trailler nos últimos anos é herdeira assumida dos procedimentos piscatorianos, embora adaptados ao tempo presente e em conformidade com certos parâmetros do teatro contemporâneo. Para o desenvolvimento dessa pesquisa, foi firmada uma profícua parceria entre o coletivo e o diretor Marcelo Soler, um especialista na seara do teatro documentário tanto do ponto de vista prático, enquanto artista e produtor de obras circunscritas ao gênero, como do ponto de vista teórico, enquanto autor de trabalhos acadêmicos a ele relacionados.

De Piscator, Desterro.Doc e Ópera Febril têm em comum, antes de mais nada, o seu substrato épico, ligado à origem etimológica da palavra, que diz

1 É jornalista, historiador e crítico teatral. Atua como professor da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (ETUFBA) e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA.

respeito àquilo que é exterior ao homem, ou seja, às relações do ser humano em sociedade, segundo aspectos políticos, econômicos e sociais. Se, em Desterro.Doc, o debate abordava a política de separação de corpos – valendo-se, para isso, da história do antigo Sanatório Vicentina Aranha – em Ópera Febril ele se desloca para a precarização das relações de trabalho, a partir da investigação empreendida pelo grupo em torno da Tecelagem Parahyba, antiga fábrica de cobertores existente em São José dos Campos entre as décadas de 1920 e 1990.

Dessa mesma matriz estética o grupo se afasta ao adotar certos princípios de composição radicalmente antidramáticos, responsáveis por levá-lo à fronteira de um teatro performático. Exemplos de tais princípios encontram-se no fato de o elenco surgir em cena despersonificado, eximindo- se de interpretar quaisquer personagens, ou dos espetáculos dispensarem o recurso da fabulação, no sentido de delinearem, mesmo que de modo atípico, uma narrativa a ser acompanha pelo público.

No caso específico de Ópera Febril – o tema, afinal, desta reflexão – tem- se um elenco formado de cinco atuadores/as-musicistas que se esmera, no desenrolar das cenas, na execução de inúmeras funções, que vão do canto à contrarregragem. Com o propósito de lhe conferir um feitio coral, todos/as utilizam o mesmo figurino, que remete ao vestuário utilizado pelos trabalhadores da indústria têxtil.

A roteirização do espetáculo prevê uma trajetória bem demarcada, na qual são apresentadas ao público duas formas cruéis de exploração, sendo uma o desdobramento da outra. A primeira delas, simbolizada pela Tecelagem Parahyba, seria a exploração “tradicional” dentro da ordem do capitalismo industrial, que permitia ao patronato obter um controle extremo sobre os corpos à sua disposição nas manufaturas. Em tal regime prevalecia a expropriação direta e manifesta do trabalho alheio, com a utilização de meios coercitivos igualmente diretos e manifestos.

Para ilustrar essa primeira forma de exploração, a trupe se vale de uma série de documentos encontrados no Arquivo Público do Município de São José dos Campos, projetados no fundo da cena e que revelam os procedimentos aplicados pela extinta tecelagem com vistas a exterminar qualquer tipo de oposição dos trabalhadores àquela estrutura opressora.

Já a segunda forma de exploração, a contemporânea, consequência direta de um tipo de capitalismo pós-industrial, comparece com força na obra quando esta volta sua atenção ao passado mais recente da política brasileira, em especial para o governo de Michel Temer (2016-2018), responsável por implementar uma reforma trabalhista afinada aos interesses burgueses do setor terciário. Seria esse o momento de consolidação da chamada “uberização” das relações de trabalho, em que até mesmo a noção dual embutida no termo “trabalhador” é combatida, em favor de palavras inofensivas mais apropriadas à classe dominante, tais como “colaborador” e, principalmente, “empreendedor”.

A exploração, que antes era explícita, torna-se implícita. O patronato, que antes possuía um rosto, agora deixa de tê-lo. E o trabalhador, isolado, vendendo sua força de trabalho como um prestador de serviços, sem saber direito de onde vêm as forças que o oprimem, resigna-se na crença alienante de que sua autonomia o levará ao sucesso profissional. O triunfo máximo do individualismo sobre o coletivismo.

Nessa trajetória que vai de um a outro regime trabalhista, inúmeros são os recursos cênicos utilizados em Ópera Febril, como projeções pré-gravadas ou gravadas in loco, coros sonantes e dissonantes, testemunhos pessoais dos/as atuadores/as (sempre relacionados aos aspectos profissionais de suas vidas), máscaras, objetos, áudios de whatsapp revelados por meio da técnica do verbatim… enfim, uma gama muito variada de artifícios que, por mais heterotópicos que sejam, perfazem, do início ao fim, uma profunda coerência lógico-discursiva ao serem mobilizados.

E é exatamente aí, nessa coerência, que se revela uma das virtudes do espetáculo, relacionada à sua capacidade de penetrar, com argúcia, em um aspecto fundamental de nossas relações sociais, valendo-se, para isso, de uma cena compósita e de uma estética híbrida, que se poderia designar, pelos motivos expostos mais atrás, de épico-performática. A ordem em que os termos estão colocados não é aleatória.

Mesmo contendo elementos que remetem a um teatro, em tese, mais formalista, o núcleo de Ópera Febril é, sobretudo, épico, por apresentar um conteúdo claro e preciso (ainda que sem fábula) e por seu caráter didático- pedagógico, no melhor sentido da expressão, que se articula ao legado

brechtiano na defesa de uma arte a serviço do esclarecimento. Dentro dessa concepção, a obra da Cia. do Trailler se justifica plenamente.

Contudo, se a exposição de dados estatísticos e informações históricas, desde que utilizados com inteligência e honestidade intelectual, podem servir ao propósito de esclarecer o/a espectador/a, nem sempre é possível, com tais recursos, emocioná-lo/a. Isso se dá por um motivo simples: apesar de fundamentais, eles são, no fundo, meras abstrações, portanto incapazes de gerar algum tipo de identificação emocional. E a emoção, é bom lembrar, não está excluída do teatro épico outrora propugnado por Bertolt Brecht. O problema, conforme o próprio teatrólogo salientava em seus textos teóricos e em sua prática cênica, é que a emoção esteja a serviço da razão, elevada, portanto, a atos de conhecimento.

Em Ópera Febril, como também em Experimento: Desterro.Doc, a estratégia de que se valem os/as roteiristas para atingir esse objetivo é individualizar o assunto sob análise, encarnando-o em figuras reais cujas trajetórias personificariam ou a catástrofe da “uberização”, no primeiro caso, ou a catástrofe da “sanitarização”, no segundo. No tocante à “uberização”, coube a Thiago de Jesus Dias exercer essa função, motoboy massacrado por uma jornada diária de 12 horas de trabalho que o leva a morrer de AVC; no tocante à “sanitarização”, à personagem de Izaura, esposa que acompanha o marido tuberculoso ao Sanatório Vicentina Aranha e é por ele abandonada lá. São     nessas              oportunidades,         em         que                    uma empatia      racionalmente conduzida se interpõe no interior das obras, que o público sente “na pele” as dores e tristezas pessoais relacionadas aos problemas escrutinados. E são também nelas que os dois espetáculos arrematam o projeto embutido em seus respectivos escopos, de esclarecer sem jamais perder de vista a noção

segundo a qual teatro é, antes de tudo, divertimento. Razão e sensibilidade.


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